quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Apologia de Schopenhauer

A vida é bela em Schopenhauer



Por Jaya Hari Das


A filosofia pessimista, atribuída ao filósofo alemão, talvez não passe de um preconceito ou de um mal-entendido, quando analisada com outros olhos e comparada à vida e à mensagem de outros homens excelsos da humanidade, como Platão, Epicuro, Nietzsche, Buda e Jesus.


O pessimismo pressupõe uma desesperança no futuro, uma previsão ruim daquilo que sobrevirá, ou, como encontrado nos melhores dicionários de nossa língua, "uma tendência para encarar as coisas pelo lado negativo". Mas o que dizer destas palavras: "A história nos mostra a vida dos povos, e nada encontra a não ser guerras e rebeliões para nos relatar; os anos de paz nos parecem apenas curtas pausas, entreatos, uma vez aqui e ali, e de igual maneira a vida do indivíduo é uma luta contínua, porém não somente metafórica, com a necessidade ou o tédio, mas também realmente com outros. Por toda parte ele encontra opositor, vive em constante luta e morre de armas em punho"? O que temos aí: extremo pessimismo ou puro realismo? Quem dentre nós poderá ser tão otimista ao ponto de negar a realidade que perpassa a história da humanidade e que pode ser encontrada, sem grandes dificuldades, em qualquer cena urbana ou privada, veiculada pelos meios da comunicação ou testemunhada na porta de nossas casas?
O nome Schopenhauer tornou-se quase sinônimo de "pessimismo" ao longo da história da filosofia. A tendência didática de rotular ou categorizar pensadores e correntes de pensamento estigmatizou um filósofo que teve como único e máximo pecado ser honesto para com sua filosofia, que concebe a vida, assim com todos os eventos da existência, como expressões diferentes da Vontade - uma força que apenas quer existir, se evidenciar num mundo que não passa de sua representação. Os quase dois séculos que nos separam de Arthur Schopenhauer, entretanto, talvez ainda não se constituam um obstáculo para uma defesa justa de suas ideias e para o vislumbramento de aspectos extremamente positivos de sua filosofia.
Zeitgeist
Expressão alemã que significa, em tradução aproximada, "espírito da época". O termo é bastante utilizado por ensaístas, sociólogos, historiadores e críticos de arte para descrever a época em que uma determinada obra artística ou movimento intelectual foi produzido. A banda de rock americana The Smashing Pumpkins lançou em 2007 um álbum intitulado Zeitgeist.


A época em que Schopenhauer viveu, na Europa do final do século 18 e início do século 19, tem algumas características peculiares, que podem muito bem dizer do Zeitgeistde então. Will Durant, em seu A história da filosofia, tenta encontrar razões para uma espécie de pessimismo comum àquele período. Diz ele: "Por que será que a primeira metade do século 19 levantou, como vozes da época, um grupo de poetas pessimistas - Byron na Inglaterra, De Musset na França, Heine na Alemanha, Leopardi na Itália [...] e, acima de tudo, um filósofo profundamente pessimista, Arthur Schopenhauer?", e acrescenta como resposta: "[...] Era bem difícil acreditar que um planeta tão lamentável quanto aquele que os homens viam em 1818 estivesse seguro nas mãos de um Deus inteligente e benevolente. Mefistófeles havia triunfado e todos os Faustos estavam desesperados". Durant também é loquaz ao dizer que "o pessimismo é o dia seguinte do otimismo".


Todo homem, ilustre ou não, é fruto de seu tempo, e também vê o mundo à sua volta como a representação de si mesmo, assim como sentenciado por um antigo filósofo grego: "O homem é a medida de todas as coisas". Schopenhauer vê as coisas do seu tempo, mas, acima de tudo, abrange com seu olhar filosófico, quiçá com sua intuição (como talvez ele próprio preferisse dizer), o passado (constituído de suas incursões pelas escrituras hindus e budistas), o presente (imposto a ele frente a frente) e o futuro (projetado por sua invejável capacidade intelectual). Assim, sua filosofia traz, evidentemente, a sabedoria oriental, que inspira aqueles que buscam respostas para seu sofrimento nos ensinamentos religiosos; a compreensão do aqui-agora existencial, que une todos os povos e todos os indivíduos como uma única nação de aflitos; e a visão profética, que, relendo os eventos da vida, vaticina para todos, sem exceção, uma espécie de eterno retorno - um retorno ao nada existencial, como último consolo à existência sofrida.
Arthur Schopenhauer teve como pai, Heinrich Schopenhauer, um rico comerciante que, além de ser um homem rígido, era um marido rude, e que tem ainda contra si a forte suspeita de ter cometido suicídio atirando-se no canal de Hamburgo. A mãe, Johanna Troisener, era uma romântica, oprimida pelo marido, que só conheceu o bom da vida após a morte dele. Apesar do pai ter feito tudo para que o jovem Arthur se interessasse pelos negócios da família, não viveu o suficiente para decepcionar-se com o filho filósofo, enquanto a relação deste com a mãe foi uma das piores. Schopenhauer viveu grande parte de sua vida viajando pela Europa à custa do dinheiro herdado do pai. Foi um solitário, tinha um cachorro, ao qual deu o nome de Atman (termo hindu para alma), e pouquíssimos amigos. Para si mesmo, considerava sua vida como a ideal - a relação com os humanos não era nada fácil, portanto, preferia a solidão. No entanto, essa vida reclusa é rotulada por alguns autores como "uma vida infeliz", o que fornece um ótimo ingrediente para fomentar a denominação que darão a ele de "filósofo do pessimismo". Sua obraprima, O mundo como vontade e representação (1819), só conquistou leitores após sua morte, e Parerga e Paralipomena (1851) trouxe- lhe o tão desejado reconhecimento, mas ele não viveu o suficiente para usufruir dele, pois morreu nove anos depois, no dia 21 de setembro de 1860, solitário como viveu.

A Vida como ela é
Enxergar as coisas tais como elas são pode ser uma tarefa amarga, mas também pode trazer recompensas surpreendentes para aqueles que antes suspeitam de tudo que é doce demais. É, provavelmente, por essa razão que o filósofo de Danzig impôs a si uma vida de retiro e solidão, tentando ao máximo evitar dissabores provenientes das frágeis e vulneráveis relações humanas, percebendo que esses bípedes (como ele chamava os humanos) ainda não estão preparados para amor e amizade verdadeiros. Pensemos: quantas pessoas mundo afora já não se desiludiram no amor e na amizade, e como gostariam de jamais terem se apaixonado ou se dedicado fervorosamente a alguém? O pensamento schopenhaueriano é, sem dúvida, um antídoto para péssimos exemplos de relacionamento humano, ou até mesmo uma espécie de cura para males intrínsecos à própria condição humana.
Em seu A cura de Schopenhauer, Irvin D. Yalom (o mesmo autor de Quando Nietzsche chorou) apresenta-nos uma trama ficcional, na qual o filósofo, melhor dizendo, sua vida e obra, serve de tratamento para um personagem que sofre de compulsão sexual. O enredo do livro trata de um grupo de pessoas que participa de sessões conjuntas de terapia. Cada uma delas, é claro, está ali por um problema particular que precisa resolver, no entanto, todas elas se veem, de repente, bombardeadas por citações de Schopenhauer, recitadas pelo novo integrante, que acabam por dominar as discussões do grupo e, ao mesmo tempo, proporcionar, de forma inusitada, novas perspectivas em suas vidas. Esse livro é, sem dúvida, um exemplo maravilhoso de que, se deixarmos de lado o estereótipo tão massificado de uma filosofia pessimista em Schopenhauer, encontraremos nela sabores e aromas terapêuticos, insuspeitados e benfazejos a qualquer de nós - bípedes.
A frase "Nenhuma relação é perfeita porque as pessoas são imperfeitas", que abre o sétimo capítulo de Mais Platão, Menos Prozac (atualmente, uma espécie de manual do chamado aconselhamento filosófico), de Lou Marinoff, tem tudo a ver com o pensamento de Schopenhauer, colocando-o no páreo com os pensadores utilizados nos consultórios dessa prática filosófica e outras abordagens terapêuticas que exploram as mais inovadoras técnicas psicofilosóficas. Devido à sua extraordinária filosofia, a essência do pensamento desse filósofo orbita tranquilamente entre as máximas de Platão e Epicuro, de Buda e Kant, de Jesus e Nietzsche, sem comprometer o teor e a substância delas, nem o valor e a autenticidade de seus autores. Se o tédio, a angústia, a depressão e a tristeza podem ser vencidas com máximas filosóficas, aliadas a uma abordagem mais ampla e mais fidedigna (nem tanto racional) do mundo, o pensamento de Schopenhauer certamente pode desencadear a desilusão positiva, a desconstrução daquela ilusão criada pelo próprio indivíduo, em face de um mundo caótico, de uma vida infeliz e de uma realidade estressante.
A filosofia de Schopenhauer explica que a natureza interessa-se menos pelo indivíduo e mais pela sua espécie. Portanto, tenta preservar essa personalidade que chamamos de "eu" será sempre perda de tempo e acréscimo de sofrimento, pois esse "eu" não pertence a si mesmo, mas é parte de algo bem maior, um "nós", que é sua espécie. Se não há consolo em saber que essa personalidade desaparece no oceano existencial - para só então retornar infinitas vezes, como milhões de outras personalidades inconscientes de quantas pessoas já foram, quantas vidas viveram, o quanto amaram, foram amadas ou sofreram - não é culpa do filósofo que assim seja, ele é apenas o decifrador de um código da natureza, que a despeito de nosso apego e romantismo pela vida, do alto de sua sabedoria não racional, não enxerga aqui na Terra homens, mulheres, crianças, pais, filhos, amantes ou rivais, como fomos condicionados a ver aqui embaixo. Ele enxerga apenas a família, a espécie humana, que, num ato de pura vontade e necessidade, mantém a roda existencial girando indefinidamente.
Destemor da morte
Dentre as contribuições positivas da filosofia schopenhaueriana para o bem-viver da humanidade, podemos citar a exortação ao destemor da morte, ou mais precisamente do valor dela em face de uma vida sofrida e miserável, e, acima de tudo, a compreensão de que ela nada mais é do que o fim de todo sofrimento, o retorno ao descanso, à quietude. Valorizar a morte pode parecer à primeira vista desvalorizar a vida, mas pode também dar novo significado à existência de quem se sente realmente um "lutador" neste mundo.
A vida da maioria de nós é literalmente uma "luta" e considerar a morte não como uma derrota, ou um fim inglório, e sim como retorno à quietude da própria essência, é comparável à promessa cristã de alcançar o céu ou à perspectiva budista de realizar o nirvana. Diz o próprio filósofo: "Trabalho, aflição, esforço e necessidade constituem durante toda a vida a sorte da maioria das pessoas", mas acrescenta, logo adiante, algo que eleva a dignidade humana: "Para uma tal espécie, como a humana, nenhum outro palco se presta, nenhuma outra existência". Pensamento tão claro e inspirador nos faz lembrar o poeta maranhense Gonçalves Dias, quando em versos nos diz: "Não chores, meu filho; não chores, que a vida é luta renhida: Viver é lutar. A vida é combate que os fracos abate, que os fortes, os bravos, só pode exaltar". Ou como diria o próprio filósofo: "A felicidade está mais na realização do que na posse ou na saciação", de que concluímos resignadamente que "a vida sem tragédia seria indigna de um homem".


É Will Durant que nos vai lembrar que a filosofia de Schopenhauer semelha muito os ensinamentos do Cristo (e, é claro, os de Buda). Diz o historiador: "O cristianismo é uma profunda filosofia do pessimismo. O poder através do qual o cristianismo conseguiu vencer primeiro o judaísmo e depois o paganismo da Grécia e de Roma está unicamente no seu pessimismo, na confissão de que nosso estado é excessivamente deplorável e pecaminoso, enquanto o judaísmo e o paganismo eram otimistas". Nós, com facilidade, podemos encontrar passagens bíblicas que levam a considerações desse tipo, mas que, vistas por um outro prisma, apresentam a morte como uma valorização da vida. Vale lembrar que, proferidas por Jesus, essas considerações em favor da morte tomam ares de inspiradora fé no significado da própria vida. "Aquele que tentar salvar sua vida, perdê-la-á. Aquele que a perder, por minha causa, reencontrála- á", disse o Nazareno. E Buda assim se pronunciou: "Olhai ao vosso redor e contemplai a vida. Tudo é passageiro e nada duradouro. Só nascimento e morte, crescimento e decadência, combinação e dissolução". E ainda Epicuro, tendo examinado a vida, sentenciou: "A morte não nos concerne, pois quando somos, ela não é, e quando ela é, já não somos".
Quando o filósofo diz: "Tão próximo de nós se localiza uma região em que nos livramos de todo nossa miséria; mas quem é dotado de força para ali se manter?", quase podemos ouvir, concomitantemente, a voz do Filho do Homem, dizendo: "O Reino dos Céus está dentro de vós!", e a do Príncipe de Kapilvastu sentenciando: "Ninguém trilhará por ti o caminho - acenda tua própria lâmpada e ande!". Será que ainda restam dúvidas quanto à veracidade e à utilidade de tal filosofia? Será que é preciso um novo rótulo para o frasco de um remédio que, por ser amargo, não merece prescrição para males ainda mais amargos da existência? Creio que não. Schopenhauer diz com despojamento de filósofo o que os avatares ensinam ao modo dos deuses. "Quando, por um instante, conseguimos estar livres do jugo da vontade, da objetividade do querer que nos impulsiona, vivemos o estado sem sofrimento, considerado por Epicuro como o mais elevado dos bens e o estado dos deuses", diz o filósofo.
A vida magnânima do Cristo culminou com seu martírio, e a de Buda, com uma morte tão comum quanto a de qualquer dos mortais. Para seres excelsos, assim como para o homem comum (produto industrial da natureza, segundo Schopenhauer), a existência conduz inexoravelmente à morte, com maior ou menor grau de sofrimento em seu transcurso. O que condiz muito bem com sua máxima: "Uma vida feliz é impossível; o máximo que o homem pode conseguir é uma vida heroica". O filósofo defende que nós, seres humanos, nada mais somos do que a objetivação de uma vontade de existir. O que levará Durant a acrescentar em sua obra, com certa jovialidade e otimismo, páginas à frente: "A vontade, claro, é uma vontade de viver, e de viver ao máximo. Como a vida é cara a todas as coisas vivas! E com que paciência silenciosa ela irá esperar o momento propício", o que corrobora as palavras do próprio filósofo, ao dizer: "Mesmo no reino orgânico vemos uma semente seca preservar a força inativa da vida durante três mil anos e, quando finalmente ocorrem as circunstâncias favoráveis, desenvolver-se numa planta". Se ainda me for permitida outra comparação, não seria demais lembrarmos as seguintes palavras do mestre de Belém: "Considerai como crescem os lírios do campo; não trabalham nem fiam".

São Francisco de AssisFrancesco Giovanni di Pietro Bernardone nasceu em 1182 (ou 1181) na cidade de Assissi (Assis), na Itália. Filho de um comerciante, conta-se que vivera uma juventude mundada e excessiva, dedicando-se posteriormente a uma vida religiosa e devotada aos pobres. Fundador da Ordem dos Frades Menores, ou Ordem Franciscana, sua figura é uma das mais admiradas pelos católicos.


A filosofia de Schopenhauer também realça aquela nobreza que cobre de louros o espírito e o caráter do ser humano, quando este consegue perceber que seu valor como protagonista da existência não está diretamente relacionado com suas posses, e que, por vezes, a riqueza é um entrave ao autoconhecimento, e a pretensa felicidade almejada jamais pode ser outorgada por outrem. Diz o filósofo: "Os homens estão mil vezes preocupados em ficarem ricos do que em adquirirem cultura, embora seja inteiramente certo que aquilo que um homem é contribui mais para sua felicidade do que aquilo que ele tem". E ainda: "A felicidade que recebemos de nós mesmos é maior do que a que conseguimos em nosso meio", o que vai concordar diretamente com Aristóteles, ao dizer que "ser feliz significa ser autossuficiente". Quantos homens não recebem honras apenas porque são ricos e poderosos, enquanto outros, verdadeiramente valorosos, são esquecidos, apenas porque são simples e sem posses?


Schopenhauer, ao tratar da renúncia das riquezas, cita Siddhartha Gautama e São Francisco de Assis. Sobre este último, ele relata um evento em que, estando o nobre e jovem Francisco num baile em que se apresentavam as belas filhas dos notáveis da época, foi perguntado: "Então, senhor Francisco, não ireis brevemente eleger uma entre estas belas?", ao que teria respondido: "Elegi para mim uma muito mais bela! La povertá". O filósofo vê o apego à individualidade como "egoísmo", uma insensatez para com a qual a natureza não se permite compactuar. Ser um e, ao mesmo tempo, ser todos, ou pelo menos muitas possibilidades de ser muitos outros, é mais próprio e adequado ao fluir existencial, à vontade da Natureza, ou, se preferirmos, à vontade de Deus.
Siddhartha Gautama
Príncipe de Kapilvastu é o título atribuído a Siddhartha Gautama, fundador do Budismo. Kapilvastu era um principado localizado na região de Lumbini, atualmente pertencente ao Nepal. Em algumas fontes de consulta, o nome do distrito aparece como Kapilavastu.

Alguns podem até achar falta de modéstia em Schopenhauer, mas, observando criteriosamente seus escritos, pode-se encontrar os créditos que ele declara a seus colaboradores, como quando diz: "Reconheço que o melhor de meu desenvolvimento próprio deve-se, ao lado da impressão do mundo intuitivo, tanto à da obra de Kant, como à dos sagrados hindus e à de Platão". Como homem culto que foi, fez um estudo aprofundado das religiões orientais, assim como do cristianismo e do judaísmo, e sua ética pode ser comparada tanto com a budista quanto com a cristã, conforme ele mesmo declara: "A todas as éticas da filosofia europeia, a minha se dispõe na relação do Novo Testamento ao Antigo, conforme o conceito bíblico desta relação. [...] Minha ética [...] possui fundamento metafísico, utilidade e objetivo: em primeiro lugar mostra teoricamente o fundamento metafísico da justiça e do amor humanos, e em seguida também aponta o objetivo a que estes, quando realizados com perfeição, devem conduzir. [...] Poder-se-ia denominar minha doutrina a filosofia propriamente cristã; por mais paradoxal que possa parecer àqueles que não atingem o cerne das coisas, mas permanecem em sua superfície".

O filósofo Friedrich Nietzsche (1844- 1900), ao tomar conhecimento da obra de Schopenhauer, ficou muito entusiasmado com o compatriota, chegando mesmo a escrever um livreto intitulado Schopenhauer Educador. Nele podemos ler logo de início: "Se tentar descrever o acontecimento que foi para mim o primeiro olhar lançado sobre os escritos de Schopenhauer, devo primeiramente me deter um pouco a uma ideia que me perseguia em minha juventude [...], imaginava que o terrível esforço, o temível dever de ter de me ocupar de minha própria educação me seria poupado pelo destino, porque encontraria no devido tempo um filósofo que fosse meu educador, um verdadeiro filósofo que pudesse ser seguido sem hesitar, uma vez que poria nele mais confiança do que em mim mesmo". Esse educador foi Schopenhauer, até Nietzsche romper com ele. Mas isso não diminui em nada o valor de Schopenhauer, e podemos continuar citando os elogios do homem-dinamite, enquanto admirador dele: "Sou desses leitores de Schopenhauer que, desde a primeira página, sabem com toda a certeza que lerão todas as outras e prestarão atenção à menor palavra que alguma vez tenha proferido".
Nietzsche, posteriormente, como mencionado, tornar-se-ia opositor daquele que antes chamara de seu "educador", mas tal rompimento é comum em discípulos que precisam se afastar de seus mestres para que suas próprias ideias não sejam ofuscadas. É muito fácil encontrar em Nietzsche falas que soam com o mesmo tom e timbre da voz de seu ex-educador. Além disso, o amor fati (amor pelo destino) nietzscheano pode parecer aos mais apressados uma contraposição à valorização da morte schopenhaueriana, mas, quando analisada de perto, demonstra-se quase irmã gêmea desta.
Revoltado com a insistente perseguição a sua filosofia, Arthur Schopenhauer lança seu grande desabafo contra as forças dominantes do pensamento filosófico de então, para colocar cada um em seu lugar. "Agora terei de ouvir novamente que minha filosofia é desesperada somente porque me expresso conforme a verdade, mas as pessoas querem que se lhes diga que o Senhor Deus tenha feito tudo do melhor modo. Dirijam-se à igreja, e deixem em paz os filósofos. Ao menos não exijam que estes exponham suas doutrinas conforme seus ensinamentos: isto, fazem-no os trapaceiros; os filosofastros: a estes, podem encomendar doutrinas à vontade".
Durant tece seus elogios ao filósofo de Danzig da seguinte forma: "Devemos a Schopenhauer o fato de nos ter revelado nossos corações secretos, de nos ter mostrado que nossos desejos são os axiomas de nossas filosofias e de ter aberto caminho para uma compreensão do pensamento não como um simples cálculo abstrato de eventos impessoais, mas como um inflexível instrumento de ação e de desejo".

Thomas Morus

Príncipe de Kapilvastu é o título atribuído a Siddhartha Gautama, fundador do Budismo. Kapilvastu era um principado localizado na região de Lumbini, atualmente pertencente ao Nepal. Em algumas fontes de consulta, o nome do distrito aparece como Kapilavastu.


A função da filosofia é, sem dúvida, promover o melhoramento da qualidade cultural e intelectual do ser humano, para que a humanidade, como um todo, seja favorecida e possa caminhar a passos largos para melhores dias, deixando escrito nas páginas invisíveis da história os relatos de lutas e glórias que perfazem a existência da espécie humana, mas não cabe a ela, de modo nenhum, instrumentar-se de mentiras doces e de vãs lucubrações somente para, sentada no trono de "mãe das ciências", governar o "Reino de Utopia", de tal forma a envergonhar até mesmo o grande Thomas Morus, que provavelmente se contorceria em seu túmulo de tanto asco e revolta.
O filósofo do pessimismo, como ficou conhecido Arthur Schopenhauer, tem muitas coisas positivas a ensinar tanto aos miseráveis quanto aos prósperos, tanto aos bípedes sem instrução quanto aos bípedes bem-instruídos, tanto aos pessimistas quanto aos otimistas. A beleza de sua filosofia não é óbvia e vulgar como alguns gostariam que fosse, ela é como o véu de Maya dos hindus, que impõe ao comum dos homens uma ilusão multicolorida, enquanto esconde por trás de si o esplendor da eternidade. O próprio filósofo pode nos dizer algo sobre isso, para que tudo o que aqui foi dito não fique como não dito: "Mas certamente a verdade será sempre paucorum hominum, e portanto deve esperar, tranquila e comodamente, pelos poucos que, por terem um modo de pensar fora do comum, possam achá-la. [...] A vida é curta, mas a verdade vai longe e tem vida longa; falemos a verdade".

* Jaya Hari Das é graduado em filosofia pela Universidade Federal do Maranhão - UFMA, professor da rede estadual de ensino do Maranhão e colaborador da revista Conhecimento Prático Filosofia.

Incursões no universo nietzscheano


Um Dançarino Chamado Zaratustra
Por Jaya Hari Das*
                        

                   Indubitavelmente, Assim falou Zaratustra é a obra que mais se identifica com seu autor; é a digital, a marca registrada de Friedrich Wilheim Nietzsche e seu maior legado à humanidade. Nela, encontram-se a Filosofia e o ideal nietzscheanos. O filósofo e Zaratustra confundem-se em uma só e mesma personalidade arquetípica - Zaratustra é, de certa forma, o alter-ego de Nietzsche. É por meio do personagem que o autor apregoa seu evangelho do advento do super-homem; é por meio dele que exerce sua espiritualidade, sua religiosidade negada. A religião de Níetzsche é o amor à terra. O seu "pathos" de religare é o puro e inocente retorno à terra, à natureza. "Eu vos rogo, meus irmãos, permanecei fiéis a terra, e não acrediteis nos que vos falam de esperanças ultraterrenas!"

                    A fé e a esperança encontradas nesse evangelho são puramente terrenas, são realizações no próprio destino histórico da humanidade; o futuro construído no hoje, aqui e agora; a corda estendida sobre o abismo, em direção ao super-homem — o único advento fiel ao sentido da terra, que ao invés de caluniá-la, condená-la, exterminá-la, produzirá a redenção de seus filhos.

                    Zaratustra é um dançarino - pois a vida é música, alegria, harmonia. O maior crime é não amar a vida, o maior delito é negar a filiação à terra, não viver potencialmente e não deixar um deus dançar dentro de si. Nietzsche ama a vida, e por isso quer dançar, malgrado seu estado doentio, quiçá, por isso mesmo, ele quer dançar. Qualquer um que tenha um deus dentro de si quer dançar; tudo o que tem "vontade de potência" dança - o universo dança sua "dança de inocência e prazer". O universo nietzscheano baila... Zaratustra, indubitavelmente, é um baílarino!

                    Zaratustra é também profeta, do ontem e do amanhã. Anuncia o que já foi - "Deus morreu"-, e o que há de vir - "o homem é algo que deve ser superado". Mas deve-se ter cuidado ao usar e tentar interpretar palavras como "profeta", "evangelho", "esperança", pois estes são termos que devem ser tomados como novíssimos axiomas, tocados miraculosamente pela total transvalorização de todos os valores e, preferencialmente, em um sentido contrário a tudo que soar religioso. O profeta nietzscheano anuncia exatamente o que o rebanho - os cristãos - não quer ouvir. Seu evangelho desagrada aos ouvidos daqueles que necessitam de mando, dos que dobram os joelhos, dos que procuram antes obedecer. O profeta nietzscheano tem tábuas de dez mil desobediências e fardos pesados para os "muitos-demais". Sua pregação não quer ouvintes ou seguidores - o pregador teme um dia ser acusado de construir uma nova gaiola, fundar uma nova religião.

                    O profeta nietzscheano anuncia o novo "evangelho" aos "espíritos livres", mas não os comanda. Liberdade aqui é estado de "potência", não há má consciência a reparar, não há joelhos a dobrar. Aquele que é livre guia a si mesmo, no entanto, percebe que não está solitário, tem boa companhia - quem ama "os espíritos livres" não carrega "mortos" consigo, antes e inexoravelmente arrasta, com seu bailar, "os vivos" de toda a terra. Assim baila Zaratustra.

                    O perfil psicológico do profeta nietzcheano é de um homem amadurecido, que padece em sua alma do peso do tempo e da experiência — o peso da sua extemporaneidade. Seu raciocínio é pleno de vontade de potência - fecundou a própria mente, que agora prenhe, tem dores de parto, quer dar à luz o super-homem. O profeta é o pai e avô de todos os "espíritos livres", dos homens do porvir, da nova humanidade; ele ama os homens com seu amor terreno, instintivo, um amor que não exige mais do que pode dar, cujo sacrifício é a própria superação, que do seu ocaso o advento do super-homem.

                    Acima de tudo, Zaratustra é, também, um ladrão. Atrair para fora do rebanho é sua missão; fazer a multidão irar-se contra ele e confundir-se, abalar seus valores e desbaratá-la - "ladrão, quer chamar-se Zaratustra para os pastores." Repugnam a Zaratustra os pregadores da morte, os caluniadores da vida, os sem-amor à terra. "Há pregadores da morte, dizia o bailarino-filósofo; e a terra está repleta de gente à qual deve pregar-se que abandone a vida (...) Repleta está a terra de gente supérflua, estragada está a vida pelos muitos-demais. Possa a "vida eterna" atraí-los para fora desta vida!".

                    Em suma, Zaratustra é o que todo homem em sã consciência deve querer ser - livre, em paz consigo e com a terra, isento de todo sentimento de culpa, destituído de todo pecado - numa palavra, um ser que dança, pois a vida é dança e harmonia.
                                                 
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Fonte: Revista Filosofia - Ciência & Vida (ano I, número 4).

A Religião sob o olhar do Filósofo

A religião sob o martelo filosófico



Por Jaya Hari Das*


Por que, até hoje, ela nunca promoveu efetivamente a elevação ética e espiritual do ser humano como deveria.


O cidadão cedeu seu direito à liberdade ao Estado, enquanto o homem, seu direito ao autoconhecimento à religião. Algumas poucas nações podem, categoricamente, vangloriar-se de terem acertado no primeiro caso, mas quase nenhuma haverá de admitir que o mesmo ocorreu com elas no segundo. Esperar que os governos satisfizessem as necessidades básicas da sociedade agora parece tão vão quanto achar que as religiões institucionais fossem modelos para a formação do homem íntegro. Aliás, se esta análise for feita no âmbito ocidental, onde Estado e Igreja, por longo tempo, andaram de mãos danegativo. Pelo menos, isso é o que se chega à conclusão, quando se perscruta resumidamente a história do homem em busca de sua felicidade e de sua essência – uma epopeia espiritual, repleta de derrotas e conquistas, de revoltas e sacrifícios, de crenças e desilusões, protagonizada por homens simples e “avatares.
Durante um longo período de obscuridade – da Pré-história até o surgimento da “razão” – muita coisa se produziu na mente humana e no mundo e solidificou-se como “verdade”. Exemplos disso são os mitos e os oráculos, que surgiram como pura necessidade de preencher o vazio da falta de explicação para alguns eventos dentro e fora do próprio homem. Se, por um lado, eles eram a única possibilidade de demonstrar a verdade, por outro, também davam espaço para a manipulação dessa verdade por parte dos sacerdotes, seus intérpretes. Desta forma, por falta de explicações melhores (assim como de uma exigência intelectual não desabrochada até então), quem tinha (ou tomava para si) a “autoridade de interpretar” exercia o poder de “revelar a verdade”. No mais das vezes, porém, a verdade estava longe de tudo aquilo que era dito ou ensinado, o que fez, desde então, com que a mentira e a ignorância andassem definitivamente de mãos dadas (mas quem haveria de suspeitar e questionar?!). Foi, provavelmente, nesses obscuros momentos da História que, assombrados por seus sonhos, suas visões, seus temores e suas superstições, aqueles homens de então se viram forçados a “inventar” suas “Entidades Superiores”, suas “Divindades”, seus “deuses e deusas” – uma forma de aliviarem seus espíritos, açoitados pelo terror do “desconhecido”. Assim, deram nomes, formas e atributos a tais seres sobrenaturais e iniciaram um aglomerado de práticas, cada uma das quais supostamente úteis para agradar ou aplacar a cólera dos tais “Senhores Invisíveis”.
Avatares
Grandes mestres, considerados como encarnações da Divindade. De acordo com a crença oriental, são exemplos desses mestres, que sempre vêm à Terra promover uma limpeza espiritual: Jesus Cristo, Buda e Krishna.

A ferro e fogo
Esses ritos foram sendo aprimorados e difundidos entre os povos primitivos, passando a ser praticados rigorosamente, como se, na falta deles, algo de muito ruim pudesse acontecer. Tais práticas ritualísticas certamente se modificaram ao longo do tempo, em razão da mistura de povos (conquistadores e conquistados) e da necessidade de adequação, de atualização dos costumes e dos padrões morais e culturais. No entanto, os elementos fundamentais de sua criação (poder e domínio) e os de sua manutenção (temor e adoração) continuaram os mesmos, e assim, hoje em dia, não importando a que culto esteja ligado, o fiel é um “náufrago”, que boia em pleno mar, segurando-se em duas pequenas tábuas, o medo e a esperança.
Foi, sem dúvida, dessa forma que tais cultos se perpetuaram até nossos dias, passando a ser chamados de “religiões”, muito bem guarnecidas pelos “senhores da verdade” – aqueles que se apropriaram dos ensinamentos dos “avatares” e, mantendo o rótulo, porém, trocando o conteúdo, venderam (e ainda vendem) “frascos da verdade” nas praças de mercados. E, apesar de todos os males que têm causado ao homem, em particular, e à Humanidade, em geral, por incrível que pareça, ainda conquistam adeptos (mesmo entre os homens mais ilustres e ilustrados deste planeta).
Sem qualquer conhecimento sobre o que realmente foi dito e feito pelos verdadeiros mestres da Humanidade (os avatares ), esses crentes de fé cega, seja pela condição miserável de suas vidas, seja por falta de acesso a outros escritos que confrontam as versões “oficiais” desses credos, nem suspeitam que tais doutrinas, longe de promoverem a elevação espiritual do ser humano, ocupam-se prioritariamente em tomar para si o monopólio da Verdade, produzir mentiras metafísicas, acobertar crimes contra a Humanidade, promover guerras contra os opositores de suas convicções, impedir o avanço do conhecimento e do autoconhecimento (pois, com a iluminação interior e exterior, suas tramas falaciosas viriam à luz), entre outros delitos de mesmo cunho.
As vítimas dessas doutrinas falaciosas não se encontram apenas entre os homens comuns, muitos filósofos e pensadores não foram capazes de se desvencilhar das malhas desses credos perniciosos; não perceberam nem intuíram os males advindos dali. Felizmente, outros esclarecidos não só enxergaram tais barbáries, como também se recusaram a fazer parte delas e denunciaram-nas explicitamente, como é o caso do britânico Bertrand Russell. São suas as palavras: “A igreja é perniciosa não apenas no que diz respeito à intelectualidade, mas também à moralidade”. Tal sentença é fortemente explorada ao longo de toda sua argumentação e o pensador amplia sua crítica à religião institucional ao dizer: “Minha visão pessoal a respeito da religião é a mesma de Lucrécio. Vejo-a como uma doença derivada do medo e como fonte de tristeza incalculável para a raça humana. Não posso, no entanto, negar que ela realizou, sim, algumas contribuições à civilização. No início, ajudou a estabelecer o calendário e fez com que os sacerdotes egípcios relatassem eclipses com cuidado tal que, com o tempo, tornaram-se capazes de prevê-los. Estou pronto a admitir esses dois serviços prestados, mas não sei de mais nenhum outro”.

Busca pela verdade
De um lado, não faltam, na História da Humanidade, homens cuja espiritualidade é inquestionável; homens cuja vida foi, em si mesma, uma espécie de “religião”. Homens que pareciam nada ter de especial, homens comuns, que levavam uma vida simples e normal, mas que traziam dentro de si a chama
que acalenta a sincera busca da Verdade – a ânsia de encontrar sua “essência como centelha divina”. Essa busca, inevitavelmente, aos poucos, transforma a vida simples desse buscador em uma “via para o Essencial Absoluto”, produz, na história desse “peregrino do espírito”, “o momento do insight”, “o ponto de mutação”. Assim foi para Agostinho de Hipona (354 – 405), quando vivenciou sua própria “experiência de Damasco” (referência à conversão de Saulo, de perseguidor de cristãos a apóstolo do Cristo, passando a chamar-se Paulo). Agostinho, aquele jovem buscador, conhecia suas limitações, suas fraquezas, suas imperfeições. Entre lágrimas de dor e de ameaçadora desesperança, ele sentencia, como um ultimatum: “Noverim me, noverim Te!”, ou seja: “quero saber quem sou e quem és Tu!”. Só então compreende que a busca da Verdade é a busca do homem por si mesmo, pois a Verdade só pode ser encontrada no âmago da alma humana – “qui novit veritatem, novit aeternitatem”. Ao ser perguntado, “o que lança o homem para além de si mesmo, à procura de Deus?”, Agostinho devolveu a seguinte resposta: “Fecisti nos ad Te et inquietum est cor nostrum, donec requiescat in Te” – que quer dizer: “Tu nos fizeste para Ti e o nosso coração permanece inquieto enquanto em Ti não repousar” (Confissões, 1, 1.1).
Apesar de meritórios exemplos de homens que se pode elencar, dentre os mais valiosos para o cristianismo, assim como para outros credos religiosos, por outro lado, não faltam homens cuja indecência, perversidade e ambição tentaram, pretensiosamente, esconder sob o manto sacerdotal. Não faltam no mundo seitas e religiões que abrigam em seu seio a pior espécie de homem, os piores assassinos, os maiores corruptores dos mesmos valores que fingem defender – a vida, a honra e a dignidade humanas. Dos pedófilos da cristandade aos radicais do Islã, ainda resta um cortejo de falsos milagreiros, profetas do fim do mundo, santos dos últimos dias, gurus de Rolls-Royces, corretores das moradias celestiais, sacerdotes do capital ilícito e discípulos dos psicotrópicos, entre outros. “Sobrecarregada está a terra dos muitos-demais”, assim nos alertara o filósofo alemão, Friedrich Nietzsche, em seu Assim falou Zaratustra, contra essa dissimulada espécie de “rebanho”. “Quem tem ouvidos para ouvir, ouça!”, também não custa acrescentar. O afã indomável, que há no ser humano, de retornar ao seio de sua “matriz” é legítimo, mas, ao mesmo tempo, torna-o vulnerável à malignidade dos prestidigitadores espirituais.
Ao cair nas malhas dessa religiosidade de mercado, os denominados “fiéis” nem sequer percebem a distância que há entre os ensinamentos dos grandes mestres da humanidade (os avatares) e as doutrinas de homens comuns a que se fidelizaram. O que me faz recorrer, novamente, a Bertrand Russell, na obra já citada, ao dizer: “Peguemos como exemplo o caso que mais interessa aos integrantes da civilização ocidental: os ensinamentos de Cristo, tal como aparecem nos evangelhos, têm tido extraordinariamente pouco a ver com a ideia dos cristãos. A coisa mais importante sobre o cristianismo, do ponto de vista social e histórico, não é Cristo, e sim a Igreja, de modo que, se formos julgar o cristianismo como força social, não devemos recorrer aos Evangelhos em busca de material”. O pensamento do ilustre britânico não se restringe a essa “fissura” cristã, ou seja, essa “sutil” diferença entre o que é propriamente do Cristo e o que é sumariamente da Igreja (lembremos da exortação do Nazareno: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é Deus”). Um pouco mais adiante, na mesma obra, Russell acrescenta: “O que é verdadeiro a respeito do cristianismo é igualmente verdadeiro a respeito do budismo. Buda era amável e iluminado; em seu leito de morte, riu dos discípulos que o julgavam imortal. Mas o sacerdote budista – tal como ele existe, por exemplo, no Tibet – tem sido obscurantista, tirânico e cruel no mais alto nível. Nada existe de acidental em relação a essa diferença entre uma igreja e seu fundador”.

Dogmas institucionais
Peço licença ao nobre pensador britânico apenas para fazer uma pequena ressalva sobre seu texto: nenhum dos avatares (Cristo, Buda ou qualquer outro) foi fundador de qualquer das pretensas religiões institucionais, que se apropriaram e monopolizaram seus nomes, suas vidas e seus ensinamentos (este é outro fato que os rebanhos de fiéis jamais se preocuparam em constatar); enquanto os ensinamentos desses grandes mestres tendiam para a libertação de seus seguidores do jugo do autoritarismo político, social e religioso e para a boa relação entre os povos, essas instituições religiosas transformaram em dogmas ou em “mistérios divinos” cada palavra proferida, criando dissensões e promovendo a intolerância entre as nações de credos diferentes, apenas para favoreceremse e firmarem-se como “donas da verdade” e, assim, dominarem seus rebanhos de crentes.
Dito isto, retorno a Russell, para “ouvir”, mais uma vez, próprio filósofo dizer aquilo que, com minhas palavras, talvez soasse sem o mesmo brilho: “Logo que se supõe que a verdade absoluta está contida nos dizeres de certo homem, eis que surge um corpo de especialistas para interpretar seus dizeres, e esses especialistas invariavelmente adquirem poder, já que detêm a chave para a verdade. Assim como qualquer outra casta privilegiada, usam seu poder em benefício próprio. São, no entanto, sob certo aspecto, piores do que qualquer casta privilegiada, já que seu negócio é expor uma verdade imutável, revelada de uma vez por todas em perfeição absoluta, de modo que se transformam necessariamente em oponentes de todo progresso intelectual e moral”.
Questionada mais a fundo, mais filosoficamente, esse tipo de religiosidade institucional, no mais das vezes, se demonstra, além de falaciosa, ilusória, como podemos perceber nas palavras do filósofo de Königsberg, Immanuel Kant (1724 – 1804), em seu A Religião nos Limites da Simples Razão: “Ora, considerar de uma maneira geral essa fé estatutária (que, sempre limitada a um povo, não pode encerrar a universal religião do mundo) como essencial para o serviço de Deus e fazer dela a condição suprema para que o homem seja agradável a Deus, aí está uma “ilusão religiosa”, e conformar- se a ela constitui um falso culto, ou seja, uma falsa adoração a Deus que é, na realidade, um ato contrário ao culto verdadeiro exigido pelo próprio Deus”.



Como disse já anteriormente, outros homens não se deixaram apanhar nas teias dessa aranha hipnotizadora que é a religião institucional, a despeito dos males e das perseguições que sofreram por causa disso. Todos nós, homens e mulheres do Ocidente, sabemos da chamada “caça às bruxas” da Igreja Católica Apostólica Romana, que, com sua “Santa Inquisição”, também perseguiu e torturou pensadores e cientistas que estavam “em desacordo” com suas ideias, interesses e ideais. Os homens e mulheres, de todos os tempos, nos quatro cantos do mundo, mormente aqui no Ocidente, que se preocupavam ou se ocupavam com “fazeres benéficos” ao avanço sociocultural e espiritual do Homem, sentiram na pele os entraves que representam essas grandes religiões ao progresso científico e à busca filosófica do ser humano por seu fundamento verdadeiro. Um desses homens foi Franciscus Van den Enden (1602 – 1674), também conhecido como Affinius (seu nome latinizado), instrutor de latim de Baruch de Spinoza e influenciador de sua vertente filosófica. Van den Enden considerava que “se a igualdade e a iluminação, no sentido de compreender a verdade das coisas, são prérequisitos essenciais para a riqueza comum e duradoura, então, uma república viável é inconcebível sem o fim da religião organizada, a qual não é nada além de um instrumento político para disciplinar e controlar o povo por meio da ignorância e credulidade”.
Outras vozes se levantaram contra o poder da Santa Igreja e deixaram sua marca de oposição em frases bem objetivas. Friedrich Nietzsche (1844 – 1900), por exemplo, declarou a morte da Igreja de Roma e suas dissidências a partir da morte de seu fundamento capital – “Deus está morto!” (Assim Falou Zaratustra); Karl Marx (1818 – 1883), percebendo a forma como a religião destrói no homem seu ímpeto de revolução diante das injustiças sociais, bradou: “A religião é o ópio do povo!” (Crítica da Filosofia do Direito de Hegel); (Crítica da Filosofia do Direito de Hegel); rebelando-se contra a intermediação de certos homens entre o buscador da Verdade e Deus, Jean-Jacques Rousseau (1712 – 1778) reclamou: “Quantos homens entre mim e Deus!” (Emílio, livro IV).
Enquanto multidões de fiéis incautos se acotovelam para receber a bênção, a instrução ou o darshan de seus padres, pastores e gurus, na verdade, o que temos é um sem-número de inocentes, que se deixam enganar por milagres teatrais, que sofrem a usurpação de seus bens ou que são iludidos com o fato de que foram tocados por uma encarnação divina. É claro que deve haver autênticos “avatares”, sacerdotes e gurus, assim como há autênticos buscadores da Verdade, mas já é mais que hora de separarmos o joio do trigo.

* Artigo publicado na Revista Filosofia - Conhecimento Prático Nº25.

Excertos de "O Governante das Estrelas"

DO HOMO SAPIENS AO HOMO UNIVERSALIS*
- As Pegadas dos Grandes Buscadores -

“Acredito que a humanidade está no umbral de uma nova era, uma era em que poderemos nos lançar além dos trágicos desperdícios dos conflitos destrutivos, além até dos esforços construtivos para corrigir o dano, e poderemos centrar nossas vidas na criatividade”
                                     John C. Pierrakos

Se mergulharmos fundo na História da Humanidade, veremos que o homem sempre teve uma tendência, digamos, ‘natural’ de perscrutar o desconhecido – o mundo à sua volta. Estar simplesmente aqui, na Terra, sem saber de onde veio, qual sua importância dentro desse fascinante universo e que destino o espera após sua breve existência, causa um imenso vazio (talvez, tão imenso quanto o vasto universo à sua volta). Desta forma, essa perscrutação que, outrora chamara-se ‘devaneio’ e hoje adquiriu o pomposo nome de ‘Ciência’, rendeu, ao longo dos séculos, mais indagações do que respostas, gerou uma infinidade de teorias (que, muitas das vezes, mais complicam e confundem do que lançam luz sobre a verdade) e, pior de tudo, caiu nas mãos dos ‘senhores da verdade’ (aqueles que se apropriaram das Escrituras Reveladas e dos Ensinamentos dos Avatares para fundar religiões e criar os “ismos” do Absoluto).
Durante um longo período de obscurantismo – da Pré-história até o surgimento da ‘Razão’ – muita coisa se produziu, na mente humana e no mundo, e se solidificou como ‘verdade’. Um exemplo disso são os ‘mitos’, que surgiram como pura necessidade de preencher o vazio da falta de explicação para alguns eventos, como a origem do Cosmo, dos seres e das coisas, mas ainda hoje, mesmo no domínio da Razão, ainda são insuperáveis. Outrora, por falta de explicações melhores (assim como de uma exigência intelectual não desabrochada até então), quem tinha (ou tomava para si) a “autoridade de dizer” exercia o poder de “estar dizendo a verdade”. No mais das vezes, porém, a verdade estava longe de tudo aquilo que era dito, o que fez, desde então, com que a mentira e a ignorância andassem definitivamente de mãos dadas (e quem haveria de suspeitar?!).

Após profunda pesquisa e estudo criterioso da literatura oriental, tanto quanto do arcabouço de conhecimentos a que tive acesso com a feitura desse trabalho, assim como uma prática de longos anos de Mantra Yoga e Meditação, comecei a ter alguns ‘insights’, que me abriram a visão para os temas fundamentais do ser humano e sua trajetória no mundo. Passei a compreender, de forma extremamente nova, algumas questões que me chamavam a atenção ainda em minha infância (por volta dos meus 10 anos) e que também são questões universais, pois acredito piamente que só aqueles que vivem a vida completamente alheios a ela são indiferentes a tão prementes questões. Minha busca por respostas a essas questões me levou a absorver informações, colhidas daqui e dali, e a considerar somente o que me era razoável, descartando tudo o que me parecesse tresloucado ou sem uma base lógica e sólida como fundamento, inclusive, muito da herança cultural e religiosa que havia recebido. A intuição é uma faculdade comum a todos nós que precisa ser exercitada, para que não seja confundida com a superstição nem com desvios da Razão (conhecida por alguns como “loucura mística”). Despi-me dos preconceitos e dos medos tão comuns em muitas pessoas, que preferem “dormitar sob o manto da ignorância” a fazerem uso benfazejo de seu intelecto e de sua intuição e, tendo chegado a minha próprias conclusões (não sem o auxílio de importantes e fidedignas fontes do verdadeiro conhecimento), resolvi compartilhar essa pesquisa com outras pessoas que, como eu, acreditam que a Verdade não é, nem jamais poderá ser, monopólio de algum homem ou de alguma instituição.

* Estes são trechos do 1º capítulo de meu livro "O Governante das Estrelas - Da Materialidade do Eterno", que deverá ser publicado no segundo semestre deste ano.

Eis o Poeta

EIS O POETA*


Eis que sou poeta, e não filósofo;
Sou um ser exposto, frágil e vulnerável;
Altivo, é certo, e pleno em suas palavras,
Que servem de couraça aos bravos corações;
Tudo em mim é emoção e sentimento;
Eis que faço trovas e canções.

O que escrevo é próprio de mim mesmo;
Espalho sortes enquanto faço versos;
As minhas rimas precisam de ar puro,
Porque sufocam em meus livros diversos,
Alguns deles, há muito que já não lidos,
E dentre esses, os meus preferidos.

Sei que os poetas troçam dos humanos
E dizem coisas que apunhalam sentimentos;
Pior de tudo: ainda falam mal dos deuses,
Para em seguida, se fingirem arrependidos.
Por isso peço que perdoem, meus amigos,
Por esses versos que jamais seriam escritos.

Teria sido eu o próprio engano,
Ao enganar-me de que sou também poeta?
Ou mais do que suponho, há a suspeita
De que os filósofos sejam todos assim,
Um misto de vidente e sonhador,
Um louco ou um profeta, como em mim? 

* Este poema faz parte do livro "Poemas que Nietzsche jamais escreveu" que publicarei dentro de alguns meses.

Sem Eira Nem Beira

SEM EIRA NEM BEIRA
Autor: Jaya Hari Das


De mil maneiras
Me faço um verso,
Me sinto um outro,
Me torno avesso.

Com mil asneiras
Me faço um bobo,
Me sinto afoito,
Me torno um tolo.

Ainda que eu queira
Não estou seguro,
Não me preparo,
Não me aturo.

A vida inteira
Não fui sincero,
Não fui eu mesmo,
Não fui nem quero.

Numa esteira
Deitei o meu corpo,
Virei de bruços,
Me fingi de morto.

Com a bananeira
Tentei outro filho,
Fiquei buchudo,
Pari sozinho.

Na cachoeira
Senti muito frio,
Tomei meu banho,
Nadei no rio.

Pela ladeira
Eu desci correndo,
Fui me ralando,
Fiquei gemendo.

Na capoeira
Sou bom de jogo,
Tenho o gingado,
Danço no jongo.

Com uma rasteira
Ganho na briga,
Bato sem pena,
Tenho minha figa.

Queira ou não queira
Sou filho-da-puta,
De uma rapariga,
Dessa prostituta.

Sem eira nem beira
Minha vida é uma luta,
Minha mão calejada
De tanta labuta.

“Sacode a poeira
E dá a volta por cima” –
É esse o meu lema,
É essa minha rima.

Vou p’ra zoeira
Tomando cachaça,
Por essa ingrata
Que me faz trapaça.

Lá na ribeira
Encontrei a Dorinha,
Beijei a danada,
Que estava sozinha.

Da ribanceira
Joguei o que eu tinha,
Pois faço o que quero –
Essa vida é minha 

- Premiado com o 3º lugar, melhor intérprete, pelo Júri Técnico, no Festival Maranhense de Poesia "Joaquim de Sousa Andrade", São Luís-Ma. novembro/2010.