SE
DEUS NÃO EXISTE, QUEM OU O QUE GOVERNA O MUNDO?
O
termo “Deus” tem significados diversos e conotações as mais variadas: “Senhor”,
“Criador”, “Pai”, são alguns dos sinônimos, enquanto “Ser Supremo” “Bem
Supremo”, “Soberano do Universo”, também são expressões usadas para se referir
a Ele. Em cada religião o termo “Deus” ganha um nome próprio, também pode mudar
de forma e atributos. A palavra “Deus” se tornou tão forte entre nós que,
quando emitida, gera nas pessoas algum tipo de reação emocional, a qual será
mais forte ou mais fraca, agradável ou desagradável, conforme seja a
identificação de cada pessoa com ela. Embora em cada religião a ideia “Deus” se
modifique, o que não muda basicamente é a sua relação com o homem e este com Ele.
Dito de maneira objetiva e clara, o que as religiões parecem dizer é que ‘Deus
foi feito para o homem e o homem foi feito para Deus’, o que evidentemente não
leva a lugar algum.
Até
aqui, nesta série de reflexões propostas, temos analisado apenas a noção de
Deus conforme apresentada pelas religiões, já que são elas que pretendem dar
conta do que Ele seja. Mas o que espero fique claro é que, além das
divergências entre elas, há ainda incongruências enormes dentro delas mesmas.
Como, por exemplo, na vertente católica do cristianismo, a ideia “Deus” é
apresentada como “o bom Pai” que tem moradas no Reino dos Céus para todos os
seus filhos (como está escrito no Novo Testamento). Ora, essa perspectiva não
dá lugar para Jeová, “O Deus Irado” que amava apenas o povo hebreu. A vertente
evangélica, embora maciçamente atrelada ao nome Jesus Cristo, parece remeta a
ideia “Deus” de volta à sua concepção no Velho Testamento, tendo, inclusive,
seu “Povo Escolhido”, “O Povo de Deus”, “Os Eleitos”, o que não é corroborado
nem um pouco pelas palavras do Cristo. Assim, vemos que o que há, na verdade, é
uma adequação da ideia “Deus” aos interesses de cada doutrina, fazendo daquele
que deveria representar “o Absoluto” um joguete, uma marionete, que é
apresentado aqui ou ali conforme não o que é, mas o que querem que seja.
Já
se foi o tempo em que não se podia questionar a existência desse “Deus das
religiões” (embora a Idade Média, insisto, ainda não tenha acabado). Hoje, esse
questionamento já não é restrito à Filosofia acadêmica, aos tratados
filosóficos de grandes pensadores, já podem ser encontradas publicações em
bancas de revistas que trazem o tema à baila. Citarei duas aqui. A renomada
revista Planeta (Editora Três), na sua edição 471, de dezembro de 2011, trouxe,
como matéria de capa, “Sem fé nem Deus”. O texto de Mariana Tavares apresenta
números do crescente aumento daqueles que não professam nenhuma religião, dos
agnósticos e dos ateus. A matéria chama a atenção para o fato de que “ateu” não
é apenas aquele que “não crê em Deus”, ele também “crê que Deus não existe” (o
que se aproxima mais do objetivo deste artigo). Além disso, a matéria apresenta
nomes de várias personalidades que “não acreditavam em Deus, como Portinari e
Sartre, assim como os nomes de grandes opositores das religiões e da existência
de Deus, como o biólogo britânico Richard Dawkins e o filósofo norte-americano
Daniel Dennett. Enfim, o texto de Mariana Tavares é elucidativo e
contextualizado, pois evoca também questões socioculturais e políticas deste
início de século 21.
A
segunda revista que citarei é a “Psique – Ciência & Vida” (Ed. Escala), que
em sua edição 97 trouxe estampada em sua capa “Fé Cega”. Nela, o texto “Quem
precisa de religião?”, Marcelo da Luz (professor, conferencista e autor do
livro “Onde a Religião termina?”) faz uma abordagem mais psicológica dessas
questões da fé em Deus. Ali, o autor cita, por exemplo, Freud, que considerava
o fenômeno religioso “uma neurose coletiva”. O texto tenta contrabalançar os
prós e os contras da fé, mas parece enfático em lembrar que certos fatores
psicológicos como o medo da morte, por exemplo, fazem as pessoas se deixarem
“manipular consciencialmente” pelas religiões. Também diz que “pessoas
inseguras quanto as próprias capacidades anseiam encontrar alguém que lhes aponte
uma estrada e lhes diga o que fazer”. Claro: é bem aí que a muleta “Deus” passa
a ser o totem das religiões e aquela velha imagem do “pastor guiando as
ovelhas”, tão atrelada ao cristianismo, não deixa dúvidas do nível de
dependência dos fieis. Parece-me pertinente também transcrever aqui dois
momentos do pensamento do autor, bastante corroboradores do que tenho dito:
“[...] a idéia da religião pacífica parece ser um mito, pois as religiões,
historicamente, sempre fizeram apologia da tirania e da escravidão”. “Se o ser
superior é mensageiro de verdadeiro amor e fraternidade, não seria mais lógico
que estimulasse os seres humanos à autonomia moral da consciência, no lugar de
exigir adoração e louvores para si mesmo?”.
Acreditando
que neste ponto todos já tenham percebido (embora não necessariamente aceitado)
ao onde pretendo chegar, pois a fé se mostra renitentemente opositora da razão,
devemos partir para a análise do que afinal sustenta, equilibra e governa todo
o Universo, pois, como vimos, aquilo que até aqui foi chamado genericamente de
“Deus” pelas religiões jamais poderia ser o promotor de tanta harmonia, sendo
Ele próprio um ‘desequilibrado’, que ora tem um humor, ora tem outro; ora é de
um jeito, ora é de outro.
Segundo
nossa maneira lógica de perceber o Universo, a Natureza, a Existência, já
concluímos, há algum tempo, que tudo isso é um “organismo auto-regulado”,
auto-suficiente, tendo “leis” extremamente eficientes em mantê-lo e
preservá-lo. Todas as espécies, aves, animais, plantas, assim como rios,
montanhas, vales e florestas, enfim, tudo pode sucumbir, ser extinto, ser
substituído, ser modificado etc, sempre parecendo que há ali um plano de
“manutenção” de algo maior. Os primeiros filósofos se debruçaram sobre essa preocupação
– qual a origem do Universo? qual a sua natureza? A isso deram o nome de cosmogonia (a gênese do cosmo); em
seguida, empreenderam meditações sobre o Universo e suas possíveis leis, dando
a isso o nome de cosmologia (o estudo
do cosmo). Ali não havia qualquer preocupação ou qualquer esperança de se
chegar a um “Deus” criador e mantenedor do mundo. A ideia “Deus”, no sentido
religioso que tratamos até agora, era totalmente desconhecida para eles. É
impressionante o que aqueles homens descobriram, embora carecendo totalmente de
instrumentos tecnológicos e outros recursos, que somente surgiriam muitos
séculos depois.
Paulo de Tarso, o verdadeiro fundador da Igreja
cristã, disse em uma de suas epístolas que “A razão do homem é, para Deus,
loucura!” (I Coríntios: 3, 19). Mas quem deu a “Razão” para o homem, o Diabo?
Se assim fosse, não haveria negar que o Diabo é realmente o grande rival de
Deus, e que ambos são forças antagônicas poderosíssimas. Aí, nos veríamos
diante de mais uma incongruência religiosa: a Religião nos diz que “Deus” é
“onipotente”, o que significa dizer, lembremos, que só Ele detém todo o poder.
E agora? Como vemos, se insistirmos em admitir a existência desse “Deus” das
religiões, teremos ainda mais um problema: o Diabo. Portanto, como tenho
proposto, deixemos “Deus” na sua santa inexistência, porque problemas nós já
temos demais sem Ele.
Se,
durante séculos, nos convencemos de que somos seres especiais, já é mais do que
hora de, também, repensarmos essa ideia. Se somos racionais e livres, como
muitos creem, já é tempo de compreender que essas qualidades podem não
significar exatamente “vantagens” ou “privilégios”, haja vista o mau uso que
temos feito dessa nossa razão e liberdade. Saímos da Idade Média, do
obscurantismo, para o otimismo iluminista do início da Era Moderna. Mas esse
otimismo com o futuro do homem, ao que parece, ‘morreu na praia’, assim que
chegou ao século 19. E, para piorar as coisas, presenteamos a primeira metade
do século 20 com as duas Grandes Guerras – o animal racional tinha aprendido a
matar os da sua mesma espécie com requintes de crueldade e com armas cada vez
mais poderosas; enquanto o animal irracional, aquele sem privilégios,
continuava predador apenas das outras espécies que eram necessárias à sua
alimentação. Quanta inveja a nossa, não?! Àquela altura, a tábua com os dez
mandamentos divinos já podia ser usada para qualquer outra coisa, menos para
ser o “Código das Leis de Deus”. Mais uma vez, vemos como os alicerces e as
colunas dos templos religiosos, suas ideias, ideais e dogmas, são perigosamente
abalados, sobrando apenas uma edificação em ruínas.
No
século 17, portanto, logo depois da Idade Média, vamos ter notícia de um filósofo,
chamado Baruch de Spinoza (1632-1677). Spinoza, como ficaria conhecido, surgiu
com ideias inovadoras sobre o tema destas nossas reflexões. Apesar de ele ainda
usar o termo “Deus”, sua noção sobre Ele era bastante diferente das dos demais
filósofos de sua época e anteriores a ele, e praticamente oposta à das
religiões – o que, evidentemente, lhe valeu uma tenaz perseguição religiosa,
que culminou na excomunhão do filósofo, promulgada pela comunidade judaica de
Amsterdam, em 27 de julho de 1656, conforme o trecho que se lê abaixo:
“Pela
decisão dos anjos e julgamento dos santos, excomungamos, expulsamos, execramos
e maldizemos Baruch de Spinoza... Maldito seja de dia e maldito seja de noite;
maldito seja quando se deita e maldito seja quando se levanta; maldito seja
quando sai e maldito seja quando regressa... Ordenamos que ninguém mantenha com
ele comunicação oral ou escrita, que ninguém lhe preste favor algum, que
ninguém permaneça com ele sob o mesmo teto ou a menos de quatro jardas, que
ninguém leia algo escrito ou transcrito por ele”.
Como
se pode ver, anjos e santos têm em seus corações a mesma malignidade de
qualquer homem mesquinho e a mesma ira dos rancorosos e ofendidos. Levando em
conta que tal texto realmente fosse a decisão de seres celestiais, não me
restaria dúvida de que eu preferiria a companhia de assassinos e ladrões a
compartilhar com eles qualquer céu. Mas saiba-se que tal ira e rancor habitam o
âmago de todas essas religiões que se dizem promotoras da paz e da fé,
simplesmente porque são invencionices de homens; e, pior, dos homens mais
baixos e obtusos – os sacerdotes. A escória que quer manter-se sempre no poder,
escondendo-se sob o manto da ‘falsa humildade’.
Como
disse linhas acima, embora Spinoza use o termo “Deus”, veremos que o
“Deus-criador” do qual ele fala nada tem a ver com o da teologia cristã. Na sentença
a seguir, o filósofo explica a existência de Deus: “[...] os homens confundem
inteiramente a natureza divina com a humana. [...] Deus está em toda parte não
como um espectador num teatro, isto é, exterior ao espetáculo, mas está em toda
parte como força, que põe e conserva as coisas, força interior às coisas postas
por ela.” Neste ponto, é bom lembrar o objetivo de nossa “reflexão”: não é o de
devolver a existência ao “Deus das religiões”, e, sim, descobrir o que ou quem
mantém o Universo. O ‘Deus de Spinoza’ se confunde com o que chamamos de
“Natureza”, só que numa perspectiva existencial imanente, e não ecológica, como
se costuma falar dela. Deus, nessa concepção, seria a Natureza não só que cria
todos os seres, mas também a que está neles, os atualiza e os mantém. Spinoza
acrescenta: “É claro que o vulgo não conhece absolutamente a natureza divina e
lhe atribui uma vontade semelhante à do homem que, em nós, é concebida como
distinta do intelecto. Creio que se deve ver nisso a base da superstição e de
inúmeros crimes”. Sem dúvida!
Creio
pertinente acrescentar ainda três noções maduras do pensamento do filósofo, a
saber: “o bom e o mau”, “essência e existência” e “o que é a vida nos seres”.
Para tanto, resumirei o pensamento de Spinoza, buscando não prejudicar (e, sim,
facilitar) sua compreensão. Pois, muito bem! O filósofo diz que considerar uma
coisa como boa ou má é uma questão puramente humana, pois o homem pensa tudo em
relação ao bem ou ao mal que lhe causa; por sua vez, Deus desconhece esse bem
ou mal, pois, sendo Ele perfeito, vê tudo o que acontece (portanto, também o
que nos acontece) como “perfeito”, e somente em nossa mente, consideramos algo
bom ou mau. Inferimos daí que “o Deus-bondade” dos religiosos é um absurdo, uma
impossibilidade, visto que na suposta mente de Deus, “bom” e “mau” não existem,
quando muito, “tudo seria apenas bom”, então como ele poderia vir ao auxílio do
homem, quando solicitado em prece, para lhe proporcionar um bem, se, em última
instância, Ele só fez e faz “o bem”?
A segunda
noção a considerar é aquela que o filósofo fala da “essência e existência de
Deus”. Diz ele que, “em Deus, essência e existência são a mesma coisa”, ou
seja, a verdade é que “Deus é”, enquanto nós, seres humanos, dizemos “Deus
existe”. Volto a lembrar que o que está sendo dito neste parágrafo de nenhuma forma
entra em contradição com o que já foi dito anteriormente, isto é, que “Deus não
existe”. Primeiramente porque o que está sendo alvo de desconstrução nestas
“Reflexões” é a ideia “Deus” das religiões, e agora passamos a considerar (como
posto no título deste capítulo) o que ou quem ordena, atualiza e mantém o
Universo, a despeito de Spinoza ainda chamar “isso” de “Deus”.
A
terceira e última noção a ser considerada será dita nas próprias palavras do
filósofo de Amsterdam, como segue: “Entendemos por vida a força pela qual as coisas perseveram em seu ser” (o grifo é
dele). Em outras palavras: há uma força que produz o que chamamos “o ser
vivente”, ou “o ser vivo”. O que há de importante nisso que remete à temática
da existência ou não de Deus? Esclareço! Se estiverem me acompanhando (ou
melhor, acompanhando o pensamento de Spinoza), lembrarão que aqui foi dito que
o filósofo, em seu pensamento, faz com que “Deus” e “Natureza” sejam uma e a
mesma coisa. Assim, se considerarmos que a “Natureza” tem seus próprios
objetivos (criação, manutenção e preservação), dentre as suas “preocupações”,
digamos assim, também está “o homem”, mas não que ele seja “o queridinho dela”,
o que não nos dará margem para crermos que “rogando seus favores” (como se faz
ao Deus e deuses das religiões) ela virá ao nosso auxílio, como “um fiel menino
de recados”. Portanto, estamos sós com os nossos problemas, embora a “Natureza”
também cuide de nós, dentro do que ela se propôs desde toda a eternidade, amém!
Para
concluir este capítulo, embora sem a pretensão de termos encerrado a temática,
tal é a sua profundidade, direi, como tenho dito reiteradamente, que o que
pretendi com esses três primeiros capítulos da série “Reflexões” foi incentivar
aqueles que realmente desejam se libertar das amarras da Idade Média e dos
horrores e absurdos das religiões a encontrarem por si mesmos, sem o auxílio de
intermediários inescrupulosos e interesseiros, os mercenários da fé, qual seria
essa “Força” que, sem contradito, é a que manifestou o Universo e deu vida a
todos os seres, que os equilibra com suas leis inexoráveis e que tudo preserva,
ainda que impingindo a todas as coisas mutações, como a morte, por exemplo. Se
compreendemos que essa “Força” tem o poder de criar, manter e preservar tudo o
que “é”, pois tudo se resume nela mesma, e, ainda assim, ao mesmo tempo,
compreendemos que, por sermos mortais, somos descartáveis, como o mais insignificante
lixo humano, e desaparecemos para sempre, então nada ficou entendido de tudo o
que foi exposto até aqui. De minha parte, serei sempre fiel não à mera ideia,
mas, sim, à convicção, respaldada no sério escrutínio da Razão, de que o fato
de sermos mortais, como corpos, não nos tira o direito supremo, outorgado pela
própria Natureza, de sermos “eternos”, posto que nossa “essência” participa não
da existência efêmera e fugaz, mas da Eternidade.