quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

MINHA MONOGRAFIA (Parte XI)

PARA ALÉM DO BEM DO MAL
Uma das idéias mais combatidas na obra de Friedrich Nietzsche é, sem dúvida, a noção do “dever” – tanto no sentido kantiano, quanto como dogma cristão (se é que há alguma diferença entre ambos!). O “imperativo categórico” elaborado por Immanuel Kant (1724 – 1804), filósofo também alemão, do século XVIII, para Nietzsche, não passa de disfarce ou reelaboração dos mandamentos cristãos, de forma sucinta: amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo; não matarás; não levantarás falso testemunho, etc, etc. A elaboração kantiana da “ação livre por dever” soa aos ouvidos do homem-dinamite como absoluta insensatez e absurdo. Para um filósofo que se mostrou contrário à metafísica deveria ser vergonhoso “cair nas malhas do velho Deus cristão”, assim pensava o destruidor de todos os valores.
Nietzsche denuncia que todas as tentativas dos filósofos nos últimos séculos de fundar uma ética foram simples remendos e arremedos de platonismo e cristianismo. As concepções de “bem” e de “mal” de dada cultura são sub-produtos de uma avaliação – mas de que perspectiva partem essas avaliações? A resposta nietzscheana é que, partindo do pressuposto de que a moral vigente é peso e medida para a valoração, bem e mal aí não passam de “pré-conceitos”, tendo como perspectiva algum ser metafísico, extra-mundano, juiz a-histórico, pois para a natureza há espiritualidade, necessidade e utilidade tanto num princípio quanto noutro.
“A moral tirou a inocência do mundo e a metafísica se constitui em verdade” – é o que diz Mauro Araújo de Sousa, em seu prefácio a “Para além do bem e do mal”, e segue citando o próprio Nietzsche: “O que é a verdade, portanto? Um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se esquecem que o são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais como moedas” (Nietzsche, 2002, p.27).
O platonismo condenou o mundo sensível à pura aparência, à inutilidade, à vulgaridade; inventou o mundo das idéias, um “mundo ideal” - quer dizer, “real” - para Nietzsche, no entanto, tudo isso não passa de divagação metafísica, devaneios platônicos, desatino. O cristianismo soube apoderar-se de “tão elevada filosofia” e montar, a partir dela, seu próprio sistema ético-filosófico – sobre isso entendem muito bem Agostinho e Tomás de Aquino, filósofos cristãos – como se isso fosse possível, diria Nietzsche. O mundo natural, a vida sobre a Terra, desde então só serviu de escárnio e pilhéria para tais filósofos, santos e deuses de toda a espécie. Qualquer extra-mundo é melhor que aqui, eis a “grande avaliação universal”. Caso não simpatizemos com tal lógica, que tal volvermos para o pessimismo schopenhaueriano, que elaborou enunciados, tais como: “sem dúvida a necessidade e o tédio constituem os dois pólos da vida humana”, ou “podemos conceber nossa existência como um episódio a perturbar, inutilmente, a bem-aventurada paz do nada”, e ainda, “Hoje está mal, amanhã será pior, até que sobrevenha o mal definitivo”? Não há o que estranhar se o suicídio, a partir desse prisma, se estabelecer como ato de maior sensatez!
Quando Nietzsche expôs seu pensamento em “Para além do bem e do mal – Prelúdio de uma filosofia do futuro” (1886), ele já havia escrito dois outros livros fundamentais para seu projeto de apresentar ao mundo a necessidade de uma transvaloração dos valores. Em “A Gaia Ciência” (1882), ele nos sai com: “A piedade é o sentimento mais agradável para aqueles que são pouco orgulhosos e que não têm possibilidades de fazer grandes conquistas: a presa fácil – qualquer ser sofredor é presa fácil - é coisa que os encanta” (p. 46); e em “Assim falou Zaratustra” (1884), sentencia: “Bem e mal, prazer e dor, eu e tu – tudo parecia-me colorida fumaça diante de olhos criadores. Queria o Criador desviar o olhar de si mesmo – e, então, criou o mundo” (p. 48). Faltava ainda “O Anticristo”, talvez para dar o desfecho final contra o demasiado tempo da moral cristã, mas esse só seria publicado postumamente. Na introdução a “Para além do bem e do mal”, Mauro Araújo de Sousa esclarece: “(...) o filósofo elabora uma crítica cultural utilizando o seu perspectivismo para abordagem, em vários aspectos, da formação do espírito no Ocidente, sempre tendo em vista reverter o quadro valorativo estabelecido pelo platonismo e sua metafísica. Também, o que é destaque na obra, é a questão dos “filósofos do futuro”, estabelecedores de novas condições culturais. Denomina esses filósofos como aqueles que são capazes de tentativas, de experimentos consigo mesmos e que, por não serem dogmáticos e nem se prenderem a nada, conseguem a liberdade do espírito. Esses filósofos do futuro seriam eles próprios os seus criadores, estando, por isso, além do bem e do mal, esse vício dualístico da “moralina cristã” .”
Portanto, estar além do bem e do mal é criar e nada temer; é soltar as amarras, porque a liberdade é galardão maior que todos os tesouros extra-mundanos da decadente moral cristã.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

ROSENFIELD - UM DEFENSOR DE NOSSAS "LIBERDADES"

O artigo que passo a transcrever é de autoria do filósofo brasileiro Denis Rosenfield. Faço-o porque considero importantíssimo divulgar o pensamento de um "sóbrio" defensor de nossas "liberdades", atento ao que o Estado não só pretende fazer, como faz, conosco, supondo-nos e colocando-nos na posição de "incapazes" - isto é, incapazes de agir e cuidar de nossa própria liberdade (caso ela exista).

O SEQUESTRO DAS LIBERDADES
Denis Lerrer Rosenfield - O Estado de S.Paulo

A liberdade é conquistada a duras penas. Sua perda pode ser relativamente rápida, mesmo imperceptível. Lutas políticas e civis se estruturam segundo suas diferentes acepções, que terminam por ser bandeiras que, com dificuldades, são levadas adiante. Frequentemente essas diferentes acepções são objeto de disputas acirradas, podendo até mesmo perverter a essência mesma do que seja a liberdade.

A liberdade é dita diferentemente segundo os interlocutores, os contextos e as definições. A rigor, caberia falar de liberdades, nas quais entram em linha de consideração a liberdade de empreender, a liberdade de escolha, a liberdade de pensamento e expressão, a liberdade da pesquisa científica, a liberdade de ir e vir, a liberdade de organização sindical e política, a liberdade religiosa e a liberdade de escolha dos dirigentes e representantes políticos.

A questão, porém, reside em que pode ocorrer um sequestro progressivo de certas acepções, outras permanecendo aparentemente intactas, até que outro sequestro reduza ainda mais o seu espectro. Tomemos a liberdade de imprensa e de expressão. O Estadão, pasmem, continua sob censura, configurando uma situação "normal", como se essa "anormalidade" fosse minimamente aceitável. O governo recuou, diante da pressão dos meios de comunicação, das medidas mais liberticidas de seu Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) em relação à imprensa e à mídia em geral. Para esse setor empresarial, as coisas aparentemente voltaram ao normal.

O problema, contudo, consiste em que se trata de uma simples aparência, pois sob a cobertura eufemística de "direitos humanos" outras medidas atentatórias às liberdades continuam constando em seus outros 500 itens e propostas. Pense-se, por exemplo, nos ditos "conselhos ambientais", que deveriam ser necessariamente consultados para a criação e ampliação de uma empresa em geral ? siderúrgica, de construção, de mineração, entre outras. Trata-se, sob a cobertura do politicamente correto, de propor a criação de "conselhos sindicais", "sovietes", para utilizar a linguagem russa, que passariam a ter ingerência na vida mesma das empresas, cerceando a liberdade de empreender.

A confusão de acepções chega a ser de tal monta que o próprio sentido da democracia é deturpado em função de um linguajar baseado numa doutrina "superior" dos direitos humanos. Assim, a democracia representativa se torna a bola da vez, com propostas de sua substituição progressiva pela democracia dita participativa. A linguagem utilizada é a da busca de uma sociedade mais justa e solidária. No entanto, quando vem à tona o significado dessas novas palavras, surgem as verdadeiras definições, como se a verdadeira sociedade justa e solidária fosse a que nasceria da destruição do capitalismo, definido como fonte de todos os males. Mais concretamente, a sociedade "justa e solidária" vem a ser identificada às propostas comunistas e socialistas dos irmãos Castro e de Hugo Chávez. Este último chegou até a ser defendido por nossos governantes como um verdadeiro democrata. Liberticidas são apresentados como libertários.

Há, também, toda uma campanha em curso que defende maior ingerência do Estado na vida dos cidadãos, cerceando a sua liberdade de escolha. Aqui, o sequestro da liberdade é dito ser feito em nome da saúde do cidadão, como se este fosse incapaz de discriminar por si mesmo aquilo que lhe convém ou não. O prazer, em particular, faz parte da escolha individual, não devendo o Estado ingerir num domínio que deveria estar ao abrigo de qualquer intervenção externa. O ato de regular os direitos individuais a partir dos direitos dos outros não pode ser confundido com uma ação administrativa estatal que se apresenta como a representação da virtude. O que não cabe é o indivíduo simplesmente receber uma imposição, dita do "bem", do que lhe deveria convir. A própria noção de prazer ? isso cada um sabe de sua própria experiência de vida ? tem os mais diferentes significados, podendo estar associada também à dor. Já Freud tinha concebido a indissociabilidade entre as pulsões de vida e morte. Cada um tem o direito de escolha de seu próprio corpo, de suas formas de expressão e de satisfação.

A liberdade de expressão e de empreender é vista igualmente com desconfiança a propósito da publicidade, como se essa atividade devesse ser cada vez mais controlada, retirando de sua alçada uma série de produtos considerados como "nocivos". Segundo essa concepção, o Estado é que determinaria o que seria tido por nocivo ou não para os cidadãos. A questão é de monta por estar baseada na confusão entre "influenciar" e "determinar". A rigor, a publicidade "influencia" o cidadão, não retirando deste sua capacidade de livre escolha. Ao contrário, ela a pressupõe. Posso comprar ou não um produto que me é apresentado publicitariamente. Daí não se segue que o cidadão seja completamente determinado, como se fosse um robô manipulável, desprovido de livre-arbítrio.

Causa espanto, também, que propostas ditas inovadoras de um "Brasil do século 21" estejam baseadas em posições retrógradas, avessas à liberdade de conhecimento e de pesquisa. Fala-se um pouco menos, neste período eleitoral, dos enormes problemas enfrentados pela CTNBio a propósito da pesquisa com transgênicos e da liberalização de sua comercialização. Até ainda recentemente, o dito "princípio da precaução" era identificado com o "princípio do imobilismo", na verdade, o princípio de restrição da própria pesquisa científica.

A liberdade de pesquisa foi conquistada após longos esforços, que perpassaram vários séculos, tornando as universidades lugares de realização das liberdades. Algumas ditas "novidades" são, agora, apresentadas como se estivéssemos diante de uma nova postura ante o mundo, quando são propostas de volta a um mundo anterior à conquista dessas liberdades.

PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFRGS. E-MAIL: DENISROSENFIELD@TERRA.COM.BR

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

UMA EXPERIÊNCIA EM SALA DE AULA

O SENHOR É ATEU?
Por Jaya Hari Das*


Minha experiência até o ano passado como professor de inglês me dizia que eu já sabia muito sobre uma sala de aula, dando aulas para alunos de cursos específico do idioma e outros do ensino médio. A relação entre mim e meus alunos sempre foi boa e a receptividade deles na primeira aula pode ser considerada dentro do esperado. Mas, no início do ano passado, comecei a dar aulas de Filosofia numa escola pública de ensino médio. Um novo desafio – nada de ensinar a conjugar to be e to do, ou meter a língua entre os dentes para pronunciar o difícil “th” inglês. Agora eu teria de “mexer” com as cabeças daqueles jovens recém-apresentados à disciplina, apresentar a eles aqueles “gregos esquisitos”, despertar neles a tal da “atitude filosófica”, o senso crítico, um olhar diferente do mundo. Assim, logo na minha primeira aula, achei conveniente saber o que eles pensavam sobre a Filosofia e quais suas expectativas para a disciplina.

Estudantes são “criaturas barulhentas”, mas se o professor lhes faz um questionamento, mesmo deixando-os à vontade para dizer o que bem entenderem, eles fazem um silêncio angustiante. É preciso convocá-los, provocá-los, escolher alguém entre eles, receber um monte de “eu, não!”, até que um deles resolve falar. E foi assim que um deles falou: “O senhor é ateu?”.

Juro que não contava com aquela pergunta. Uma pergunta difícil de ser respondida, sobretudo para aqueles com os quais você conviverá por todo o ano letivo, tentando ser simpático, para que sua disciplina seja bem-aceita e seu dever como professor seja cumprido, ao menos, de maneira “razoável”. Tive de ser ágil o suficiente para não dar a impressão de que fora posto em “cheque- mate” por um aluno do ensino médio, logo na minha estreia.Sem querer, aquele aluno me deu a grande oportunidade de criar, ao mesmo tempo, um chavão e uma metodologia de ensino para minha nova disciplina. Foi, sem dúvida, Sócrates, o grego, quem me acudiu naquela tarde calorenta de início de maio. Fui em direção ao aluno que fizera a pergunta e, sob os olhares apreensivos de seus colegas, diante da “ousadia” do perguntador, cheguei bem perto dele e perguntei: “O que significa ‘ser ateu’ pra você?”.

É claro que ele não me respondeu, mas também não retrucou que eu estava tentando fugir à sua pergunta. Isso, no entanto, foi o suficiente para começar aquela aula inaugural. E, como disse anteriormente, orientou todo o meu trabalho na disciplina de Filosofia, pelo menos para aquele ano. Esse fato que se passou tal qual acabo de relatar, numa experiência real em sala de aula, prova que a Filosofia como disciplina pode ser tão fascinante e prática quanto é em seu sentido mais originário. Existem muitas possibilidades de se ensinar Filosofia, vivenciando seus elementos mais estruturais e básicos: a dialética, a maiêutica, a crítica e até o ceticismo.

A cada início de aula, eu convocava meus alunos a serem “sem-vergonhas”. Provocava-os a falar e a perguntar, sentenciando que “só os ignorantes” são “envergonhados”, por isso não ousam saber, e que, ao mesmo tempo, são “desavergonhados” por não terem vergonha da própria ignorância e imbecilidade em que se acomodaram. Disse a eles que só se pode responder bem a uma pergunta, não quando se sabe a resposta, mas quando se conhece bem “aquilo” sobre o que ela pergunta. Ensinei-lhes que é fácil “crer”, pois é uma atitude “negativa”, “passiva”, que não necessita de esforço, porém, “saber”, por ser uma atitude “positiva”, “ativa”, resultante da vontade, é a atitude daqueles que conhecem a “fé” pelo seu lado “prático”, e que, só assim, fé e conhecimento podem caminhar juntos, como a Filosofia (que sempre foi uma espécie de “advogado do diabo”) tem caminhado com a Ciência e a Religião, sempre aparando as arestas do absurdo.


*Jaya Hari Das é Filósofo e Fundador do Moficushinth – Movimento Filosófico “Cura do ser humano integral” – Terapia Hari.
E-mail: moficushinth@yahoo.com.br
Blog: http://terapiahari.blogspot.com
Twitter: jayaharidas