domingo, 1 de março de 2015

VIOLÊNCIA E HUMANIDADE

HUMANO: DEMASIADO VIOLENTO


Adentramos o século 21 sem ter dado cabo de um problema seríssimo que assola a humanidade desde o seu alvorecer: a violência humana. A Filosofia e a Religião já se debruçaram demasiadamente sobre essa problemática, mas foram até agora incapazes de se aprofundar nas causas da “bestialização humana”, de modo a evitar ou, pelo menos, contornar seus efeitos devastadores. Nessa perspectiva, venho através deste artigo levantar alguns pontos de vista, dentre os quais aquele que encontrei num texto recente, intitulado “A violência como condição humana”, de autoria de Alexandre Marques Cabral, publicado na revista Filosofia – Ciência & Vida Nº54 (Ed. Escala), que servirá de ponto de partida para outras considerações sobre a temática.

Como fica claro no próprio título, o autor desnudará sua convicção de que a violência é inerente à condição humana e tentará, com maestria, provar isso ontologicamente[1]. Sua proposição inicial confirma isso: “A história da humanidade e a história da violência parecem copertencerem por essência, não acidentalmente”. Linhas abaixo, ele avança com seus argumentos: “sofrer e fazer sofrer, portanto, parece ser o combustível dos povos. Isto significa dizer que as culturas em geral sempre elevaram o ideal sadomasoquista[2] à dignidade do altar”. O autor nega que a desvalorização dos valores supremos, tidos como absolutos (como a “Morte de Deus”, defendida por Nietzsche), sejam causa ou consequência da violência no homem. Também nega que seja um problema moral: “Não é a força ou o enfraquecimento axiológicos[3] que determinam a presença ou a ausência da violência”, e conclui, em seguida, que “a violência deve ser abordada ontologicamente”.

Cabral vai à Gênesis bíblica[4] para fundamentar seu pensamento: “Onde há ser humano há condições de violência. Não foi à toa que narrativa mítica da Bíblia judaico-cristã projetou as raízes da violência na relação entre os dois primeiros irmãos da humanidade: Caim e Abel. Isto sinaliza que, na raiz da humanidade, a violência está presente, tornando-se normativa[5] em toda história posterior”. Diz ainda ele: “Sair da animalidade para chegar e permanecer na racionalidade é a intenção ascética[6] que atravessa toda a luta ocidental contra a violência. [...] Não é à toa que a figura ocidental religiosa que personifica a violência e a degradação humana é a besta[7].

O autor lança mão dos existencialistas[8] de primeira grandeza, Kierkegaard, Heidegger e Sartre, dizendo que estes defenderam que o homem é “marcado por uma negatividade fundamental”, e argumenta: “Não sendo em sintonia com o modo próprio de ser da existência, o homem pode não suportar as alteridades[9] e não se abrir e não se abrir para novos modos de ser a partir da instauração de novas relações. Impotente para o jogo racional e conflitivo da existência, a violência passa a ser um dispositivo necessário para a manutenção de um tipo vital cristalizado, que não consegue abrir-se a novas alteridades e mudar a si mesmo. Por isso, a violência é sempre um recurso existencial que deflagra, sobretudo, a impotência daquele que dela faz uso”. Daí, ele conclui: “Frente à violência não s pode com uma fórmula mágica, mas devem-se criar múltiplas estratégias de resistência à sempre presente possibilidade de disseminação de mecanismos de reificação[10] da existência e do seu pressuposto vital, a saber, o tipo existencial impotente”.

Como podemos ver, o professor Marques Cabral não tem dúvidas de que dificilmente algum de nós terá forças suficientes para erradicar de si a violência, o que nos faz concluir que toda a humanidade, neste jogo existencial, está em xeque.

Porém, como disse no início deste artigo, esse primeiro texto servirá somente de abertura para uma discussão maior, levando em conta outros dois textos: um do professor de Ética Aplicada do programa de pós-graduação em Filosofia da Universidade Gama Filho, Delmo Mattos, cujo título é “Hobbes versus Aristóteles: a socialização como problema”, publicado na edição 54 da revista Filosofia – Ciência & Vida (Ed. Escala); e outro, de minha autoria, “Demasiado Humano?”, publicado na edição 29 da revista Filosofia – Conhecimento Prático (também da Ed. Escala).


  No primeiro desses textos, Mattos, apesar de admitir que a violência caminha junto com a humanidade, parece não seguir na mesma linha de Marques Cabral, como podemos ver nestas linhas: “Desde os primórdios da humanidade, a vida em sociedade é marcada por contradições e conflitos. Na atualidade, este fato está cada vez mais visível, na medida em que assistimos, atônitos, ao alto grau de violência nos grandes centros urbanos. A todo instante, somos conduzidos a crer que a violência faz parte da condição humana, ou seja, que somos naturalmente seres violentos. Com efeito, acreditar nesta premissa torna-se argumentativamente onerosa, pois, como se sabe, nada pode justificar de forma plausível que a violência nos é verdadeiramente inerente”.

Fazendo de Hobbes[11] e Aristóteles[12] porta-vozes de suas reflexões, Mattos vai analisar o problema da violência humana como sendo uma questão contornável pela via da racionalidade e, consequentemente, pela nossa capacidade enquanto seres sociais e políticos, embora todos nós saibamos que, até a atualidade, tudo isso não foi suficiente. Mesmo assim, o autor diz: “Thomas Hobbes [...] parte dos primeiros indícios de movimento do homem, em vistas ao conhecimento das paixões e outras faculdades humanas, com o objetivo maior de demonstrar, em um segundo momento, como estas paixões e faculdades determinam o comportamento inevitável do homem em relação aos outros homens, quando removida a obrigação do cumprimento da lei e dos contratos, o estado de natureza”. “[...] Hobbes caracterizará a natureza do “homem natural” no plano de interação a partir de dois predicados fundamentais: (a) o primeiro, decorrente da igualdade de condições, é a cobiça natural dos homens proveniente das suas paixões; (b) o segundo, é o desejo que cada homem possui de evitar a morte como o maior dos males da natureza”.

É fácil supor que, como homem do século 17, evidentemente, Hobbes teve a oportunidade de conhecer história de várias sociedades, de vários Estados, e assim pôde tecer pensamentos mais sofisticados que os de Aristóteles, que só teve para si os anos áureos da Grécia Antiga. Mesmo assim, é louvável que o autor, contrapondo esses filósofos tão cronologicamente afastados entre si, busque respostas em favor da sociabilidade humana.

Citando Aristóteles, diz Mattos: “Em sua obra Política, [...] o filósofo grego afirma ser a pólis (a cidade-estado grega) resultante de uma série de associações naturais, ou seja, como resultado de um processo natural de desenvolvimento, “tão natural como a união de homem e da mulher – com fim de preservar a espécie”. Uma associação humana qualquer é, segundo o filósofo em questão, um todo composto por pelo menos mais de um indivíduo, que tem como fim um determinado bem”.

Como era de se esperar, Delmo Mattos irá concluir, para a infelicidade de todos nós, humanos, o seguinte: “Diante dos argumentos de Hobbes, no qual ele contrasta a sociabilidade humana da sociabilidade animal, podemos inferir, por sua demonstração, que a sociabilidade humana é bastante diferente da sociabilidade natural aristotélica, pois mesmo os desvios do comportamento animal, este não deixam de perseguir um fim comum, enquanto que a conduta humana tende naturalmente para a desagregação. Por outro lado, os desvios dos homens, ao contrário dos animais, adquirem rapidamente o caráter de lutas e querelas que acabam por determinar em uma “guerra de todos contra todos”, colocando, portanto, em questão a própria sociabilidade humana”.

Chegando, por fim, ao meu próprio texto, devo logo salientar que o mesmo não foi escrito apenas com o intuito de investigar esse “mal no homem” – a violência de uns contra os outros –, mas também num sentimento de indignação e revolta em perceber que somos “impotentes” diante da animalidade que nos habita. No entanto, também devo acrescentar, nego-me a aceitar que somos maus por natureza, num sentido ontológico. Creio somente que bem e mal fazem parte de nossa natureza existencial, não de nossa essência. Para mim, o desequilíbrio entre essas duas potências no homem é que determina “um bem maior” ou “um mal maior” no mundo, como um todo.

Pois muito bem! Como são minhas próprias palavras (ou, pelo menos, emprestadas daqueles que serviram às minhas considerações), não farei ressalvas ou considerações neste último texto que concluirá nossa investigação, por ora. Transcreverei trechos interessantes dele, que me parecem úteis à nossa proposta aqui. E é assim que o começo: “Ao longo do tempo, os conflitos entre povos e nações mudaram seus motivos, porém mantiveram seu traço de absurdo. Se somos seres dotados de razão e interessados em encontrar a felicidade, por que, então, vivemos em guerra?”.

“Desde os tempos mais remotos, o homem vem tentando viver em bando, ou em sociedade, buscando assim sua proteção e seu bem-estar. Nessa trajetória, ele impôs regras a si mesmo, a fim de manter um convívio pacífico com seus semelhantes e tentar preservar sua vida e seus bens materiais e afetivos. No entanto, muitas foram (e ainda são) as dificuldades encontradas na realização de seu intento e, infelizmente, as ameaças a seu afã existencial, ao que parece, encontram- se nele mesmo. Entramos no século 21 incertos quanto à nossa capacidade de fazer desaparecer do nosso mundo a máxima que paira sobre a humanidade: bellum omnium contra omnes[13].

Diz Aristóteles: “O homem que deseja viver bem deve viver segundo a razão”, e que “O bem supremo realizado pelo homem (a felicidade) consiste em aperfeiçoar- se enquanto homem, na atividade que o diferencia de todas as outras criaturas – a racionalidade”. Lição aprendida? Evidentemente, não!”.

Diante de tantas dificuldades e, assim mesmo, buscando ainda uma saída para a nossa própria violência, fiquemos com esta indagação inquisidora de Nietzsche[14]: "Todos os seres até hoje criaram alguma coisa superior a si mesmos; e vós quereis ser o refluxo deste grande fluxo e até mesmo retroceder às bestas, em vez de superar o homem?".




[1] Ontologia é a parte da metafísica que trata da natureza, realidade e existência dos entes. A ontologia trata do ser enquanto ser, isto é, do ser concebido como tendo uma natureza comum que é inerente a todos e a cada um dos seres.
[2] Termo nascido da união de outras duas palavras: sadismo e masoquismo. O sadismo é a tendência em uma pessoa de prazer impondo o sofrimento físico e moral a outra pessoa. Já o masoquismo é a tendência oposta ao sadismo: a pessoa sente prazer em receber o sofrimento físico e moral de outra pessoa.
[3] Axiológico é tudo aquilo que se refere a um conceito de valor, isto é, os valores predominantes em uma determinada sociedade.
[4] Faz parte do Pentateuco e da Torá, os cinco primeiros livros bíblicos. Narra uma visão mitológica, desde a criação do mundo, na perspectiva hebraica, genealogias dos Patriarcas bíblicos, até à fixação deste povo no Egito, através da história de José.
[5] Normativo é aquilo que se entende como “regra”, ou “norma”, imposta inapelavelmente a todo ser ou coisa, dentro de um determinado contexto ou situação.
[6] O ascetismo é uma filosofia de vida na qual são refreados os prazeres mundanos, onde se propõem a austeridade. Pessoas que praticam um estilo de vida austero definem suas práticas como virtuosas e perseguem o objetivo de adquirir uma grande espiritualidade.
[7] A Besta do Apocalipse, ou simplesmente Besta, é uma figura do livro do Apocalipse de João que, na Bíblia, é relacionada ao Anticristo.
[8] Existencialismo é uma escola filosófica dos séculos XIX e XX. O filósofo Søren Kierkegaard é considerado o pai do existencialismo. Ele sustentava a ideia de que o indivíduo é o único responsável em dar significado à sua vida e em vivê-la de maneira sincera e apaixonada.
[9] Alteridade é a concepção de que todo o homem social interage e interdepende do outro. Assim, como muitos antropólogos e cientistas sociais afirmam, a existência do "eu-individual" só é permitida mediante um contato com o outro.
[10]  Processo em que uma realidade social ou subjetiva de natureza dinâmica e criativa passa a apresentar determinadas características (fixidez, automatismo, passividade) de um objeto inorgânico, perdendo sua autonomia e autoconsciência.
[11] Thomas Hobbes (1588-1679), matemático, teórico político, e filósofo inglês, autor de “Leviatã” (1651) e “Do cidadão” (1651).
[12] Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.): filósofo grego, aluno de Platão e professor de Alexandre, o Grande, é visto como um dos fundadores da filosofia ocidental.
[13]  Expressão que em latim significa "A guerra de todos contra todos". Foi citada por Thomas Hobbes em sua obra Leviatã, descrevendo é esta que é essa a situação da humanidade no estado natural (pré-social).
[14] Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900), filólogofilósofocrítico culturalpoeta e compositor alemão do século XIX. Escreveu vários textos críticos sobre a religião, a moral, a cultura contemporânea, filosofia e ciência, exibindo uma predileção por metáforaironia e aforismo.