HUMANO:
DEMASIADO VIOLENTO
Adentramos
o século 21 sem ter dado cabo de um problema seríssimo que assola a
humanidade desde o seu alvorecer: a violência humana. A Filosofia e a Religião
já se debruçaram demasiadamente sobre essa problemática, mas foram até agora
incapazes de se aprofundar nas causas da “bestialização humana”, de modo a
evitar ou, pelo menos, contornar seus efeitos devastadores. Nessa perspectiva,
venho através deste artigo levantar alguns pontos de vista, dentre os quais
aquele que encontrei num texto recente, intitulado “A violência como condição
humana”, de autoria de Alexandre Marques Cabral, publicado na revista Filosofia
– Ciência & Vida Nº54 (Ed. Escala), que servirá de ponto de partida para
outras considerações sobre a temática.
Como
fica claro no próprio título, o autor desnudará sua convicção de que a
violência é inerente à condição humana e tentará, com maestria, provar isso
ontologicamente[1].
Sua proposição inicial confirma isso: “A história da humanidade e a história da
violência parecem copertencerem por essência, não acidentalmente”. Linhas
abaixo, ele avança com seus argumentos: “sofrer e fazer sofrer, portanto,
parece ser o combustível dos povos. Isto significa dizer que as culturas em
geral sempre elevaram o ideal sadomasoquista[2] à
dignidade do altar”. O autor nega que a desvalorização dos valores supremos,
tidos como absolutos (como a “Morte de Deus”, defendida por Nietzsche), sejam
causa ou consequência da violência no homem. Também nega que seja um problema
moral: “Não é a força ou o enfraquecimento axiológicos[3]
que determinam a presença ou a ausência da violência”, e conclui, em seguida,
que “a violência deve ser abordada ontologicamente”.
Cabral
vai à Gênesis bíblica[4]
para fundamentar seu pensamento: “Onde há ser humano há condições de violência.
Não foi à toa que narrativa mítica da Bíblia judaico-cristã projetou as raízes
da violência na relação entre os dois primeiros irmãos da humanidade: Caim e
Abel. Isto sinaliza que, na raiz da humanidade, a violência está presente,
tornando-se normativa[5] em
toda história posterior”. Diz ainda ele: “Sair da animalidade para chegar e
permanecer na racionalidade é a intenção ascética[6]
que atravessa toda a luta ocidental contra a violência. [...] Não é à toa que a
figura ocidental religiosa que personifica a violência e a degradação humana é
a besta”[7].
O
autor lança mão dos existencialistas[8] de
primeira grandeza, Kierkegaard, Heidegger e Sartre, dizendo que estes
defenderam que o homem é “marcado por uma negatividade
fundamental”, e argumenta: “Não sendo em sintonia com o modo próprio de ser da
existência, o homem pode não suportar as alteridades[9] e
não se abrir e não se abrir para novos modos de ser a partir da instauração de
novas relações. Impotente para o jogo racional e conflitivo da existência, a
violência passa a ser um dispositivo
necessário para a manutenção de um tipo vital cristalizado, que não consegue
abrir-se a novas alteridades e mudar a si mesmo. Por isso, a violência é sempre
um recurso existencial que deflagra, sobretudo, a impotência daquele que dela
faz uso”. Daí, ele conclui: “Frente à violência não s pode com uma fórmula
mágica, mas devem-se criar múltiplas estratégias de resistência à sempre
presente possibilidade de disseminação de mecanismos de reificação[10]
da existência e do seu pressuposto vital, a saber, o tipo existencial impotente”.
Como
podemos ver, o professor Marques Cabral não tem dúvidas de que dificilmente
algum de nós terá forças suficientes para erradicar de si a violência, o que nos
faz concluir que toda a humanidade, neste jogo existencial, está em xeque.
Porém,
como disse no início deste artigo, esse primeiro texto servirá somente de
abertura para uma discussão maior, levando em conta outros dois textos: um do professor
de Ética Aplicada do programa de pós-graduação em Filosofia da Universidade
Gama Filho, Delmo Mattos, cujo título é “Hobbes versus Aristóteles:
a
socialização como problema”, publicado na edição 54 da revista Filosofia –
Ciência & Vida (Ed. Escala); e outro, de minha autoria, “Demasiado
Humano?”, publicado na edição 29 da revista Filosofia – Conhecimento Prático
(também da Ed. Escala).
No
primeiro desses textos, Mattos, apesar de admitir que a violência caminha junto
com a humanidade, parece não seguir na mesma linha de Marques Cabral, como
podemos ver nestas linhas: “Desde os primórdios da humanidade, a vida em
sociedade é marcada por contradições e conflitos. Na atualidade, este fato está
cada vez mais visível, na medida em que assistimos, atônitos, ao alto grau de
violência nos grandes centros urbanos. A todo instante, somos conduzidos a crer
que a violência faz parte da condição humana, ou seja, que somos
naturalmente seres violentos. Com efeito, acreditar nesta premissa torna-se
argumentativamente onerosa, pois, como se sabe, nada pode justificar de forma
plausível que a violência nos é verdadeiramente inerente”.
Fazendo
de Hobbes[11]
e Aristóteles[12]
porta-vozes de suas reflexões, Mattos vai analisar o problema da violência
humana como sendo uma questão contornável pela via da racionalidade e,
consequentemente, pela nossa capacidade enquanto seres sociais e políticos,
embora todos nós saibamos que, até a atualidade, tudo isso não foi suficiente. Mesmo
assim, o autor diz: “Thomas Hobbes [...] parte dos primeiros indícios de
movimento do homem, em vistas ao conhecimento das paixões e outras faculdades
humanas, com o objetivo maior de demonstrar, em um segundo momento, como estas
paixões e faculdades determinam o comportamento inevitável do homem em relação aos
outros homens, quando removida a obrigação do cumprimento da lei e
dos contratos, o estado de natureza”. “[...] Hobbes
caracterizará a natureza do “homem natural” no plano de interação a partir de
dois predicados fundamentais: (a) o primeiro, decorrente da igualdade de
condições, é a cobiça natural dos homens proveniente das suas paixões; (b) o
segundo, é o desejo que cada homem possui de evitar a morte como o
maior dos males da natureza”.
É
fácil supor que, como homem do século 17, evidentemente, Hobbes teve a
oportunidade de conhecer história de várias sociedades, de vários Estados, e
assim pôde tecer pensamentos mais sofisticados que os de Aristóteles, que só
teve para si os anos áureos da Grécia Antiga. Mesmo assim, é louvável que o
autor, contrapondo esses filósofos tão cronologicamente afastados entre si,
busque respostas em favor da sociabilidade humana.
Citando
Aristóteles, diz Mattos: “Em sua obra Política, [...] o filósofo grego afirma
ser a pólis (a cidade-estado grega) resultante de uma série de
associações naturais, ou seja, como resultado de um processo natural de
desenvolvimento, “tão natural como a união de homem e da mulher – com fim de
preservar a espécie”. Uma associação humana qualquer é, segundo o filósofo em
questão, um todo composto por pelo menos mais de um indivíduo, que tem como fim
um determinado bem”.
Como
era de se esperar, Delmo Mattos irá concluir, para a infelicidade de todos nós,
humanos, o seguinte: “Diante dos argumentos de Hobbes, no qual ele contrasta
a sociabilidade humana da sociabilidade animal, podemos inferir, por
sua demonstração, que a sociabilidade humana é bastante diferente da
sociabilidade natural aristotélica, pois mesmo os desvios do comportamento
animal, este não deixam de perseguir um fim comum, enquanto que a conduta
humana tende naturalmente para a desagregação. Por outro lado, os desvios dos
homens, ao contrário dos animais, adquirem rapidamente o caráter de lutas e
querelas que acabam por determinar em uma “guerra de todos contra todos”,
colocando, portanto, em questão a própria sociabilidade humana”.
Chegando,
por fim, ao meu próprio texto, devo logo salientar que o mesmo não foi escrito
apenas com o intuito de investigar esse “mal no homem” – a violência de uns
contra os outros –, mas também num sentimento de indignação e revolta em
perceber que somos “impotentes” diante da animalidade que nos habita. No
entanto, também devo acrescentar, nego-me a aceitar que somos maus por
natureza, num sentido ontológico. Creio somente que bem e mal fazem parte de
nossa natureza existencial, não de nossa essência. Para mim, o desequilíbrio
entre essas duas potências no homem é que determina “um bem maior” ou “um mal maior”
no mundo, como um todo.
Pois
muito bem! Como são minhas próprias palavras (ou, pelo menos, emprestadas
daqueles que serviram às minhas considerações), não farei ressalvas ou
considerações neste último texto que concluirá nossa investigação, por ora.
Transcreverei trechos interessantes dele, que me parecem úteis à nossa proposta
aqui. E é assim que o começo: “Ao longo do tempo, os conflitos entre povos e
nações mudaram seus motivos, porém mantiveram seu traço de absurdo. Se somos
seres dotados de razão e interessados em encontrar a felicidade, por que,
então, vivemos em guerra?”.
“Desde
os tempos mais remotos, o homem vem tentando viver em bando, ou em sociedade,
buscando assim sua proteção e seu bem-estar. Nessa trajetória, ele impôs regras
a si mesmo, a fim de manter um convívio pacífico com seus semelhantes e tentar
preservar sua vida e seus bens materiais e afetivos. No entanto, muitas foram
(e ainda são) as dificuldades encontradas na realização de seu intento e,
infelizmente, as ameaças a seu afã existencial, ao que parece, encontram- se
nele mesmo. Entramos no século 21 incertos quanto à nossa capacidade de fazer
desaparecer do nosso mundo a máxima que paira sobre a humanidade: bellum omnium contra omnes[13].
Diz
Aristóteles: “O homem que deseja viver bem deve viver segundo a razão”, e que
“O bem supremo realizado pelo homem (a felicidade) consiste em aperfeiçoar- se
enquanto homem, na atividade que o diferencia de todas as outras criaturas – a
racionalidade”. Lição aprendida? Evidentemente, não!”.
Diante
de tantas dificuldades e, assim mesmo, buscando ainda uma saída para a nossa
própria violência, fiquemos com esta indagação inquisidora de Nietzsche[14]:
"Todos os seres até hoje criaram alguma coisa superior a si mesmos; e vós
quereis ser o refluxo deste grande fluxo e até mesmo retroceder às bestas, em
vez de superar o homem?".
[1]
Ontologia é a parte da metafísica que
trata da natureza, realidade e existência dos entes. A ontologia trata do ser
enquanto ser, isto é, do ser concebido como tendo uma natureza comum que é
inerente a todos e a cada um dos seres.
[2]
Termo nascido da união de outras duas palavras: sadismo e masoquismo. O sadismo é
a tendência em uma pessoa de prazer impondo o sofrimento físico e moral a outra
pessoa. Já o masoquismo é a tendência oposta ao sadismo: a pessoa
sente prazer em receber o sofrimento físico e moral de outra pessoa.
[3] Axiológico é tudo aquilo
que se refere a um conceito de valor, isto é, os valores predominantes em
uma determinada sociedade.
[4]
Faz parte do Pentateuco e da Torá,
os cinco primeiros livros bíblicos. Narra uma visão mitológica, desde a criação do
mundo, na perspectiva hebraica, genealogias dos Patriarcas bíblicos, até à fixação deste povo
no Egito, através
da história de José.
[5] Normativo é aquilo que se
entende como “regra”, ou “norma”, imposta inapelavelmente a todo ser ou coisa,
dentro de um determinado contexto ou situação.
[6]
O ascetismo é uma filosofia de vida na qual são refreados os prazeres
mundanos, onde se propõem a austeridade.
Pessoas que praticam um estilo de vida austero definem suas práticas como virtuosas e
perseguem o objetivo de adquirir uma grande espiritualidade.
[7] A Besta do Apocalipse, ou
simplesmente Besta, é uma figura do livro do Apocalipse de João que, na Bíblia,
é relacionada ao Anticristo.
[8]
Existencialismo é uma escola filosófica dos séculos XIX e XX. O filósofo Søren Kierkegaard é considerado o pai do
existencialismo. Ele sustentava a ideia de que o indivíduo é o único
responsável em dar significado à sua vida e em vivê-la de maneira sincera e
apaixonada.
[9]
Alteridade é a concepção
de que todo o homem social interage e interdepende do outro. Assim, como muitos antropólogos e cientistas sociais afirmam, a existência
do "eu-individual" só é permitida mediante um contato com o outro.
[10]
Processo em que uma realidade social ou subjetiva de natureza dinâmica e
criativa passa a apresentar determinadas características (fixidez, automatismo,
passividade) de um objeto inorgânico, perdendo sua autonomia e autoconsciência.
[12]
Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.):
filósofo grego,
aluno de Platão e
professor de Alexandre, o Grande, é
visto como um dos fundadores da filosofia ocidental.
[13]
Expressão que em latim significa "A guerra de todos contra
todos". Foi citada por Thomas Hobbes em
sua obra Leviatã, descrevendo é esta que é essa a
situação da humanidade no estado
natural (pré-social).
[14]
Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900),
filólogo, filósofo, crítico
cultural, poeta e compositor
alemão do século XIX. Escreveu
vários textos críticos sobre a religião, a moral, a cultura contemporânea,
filosofia e ciência, exibindo uma predileção por metáfora, ironia e aforismo.