quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

A Religião sob o olhar do Filósofo

A religião sob o martelo filosófico



Por Jaya Hari Das*


Por que, até hoje, ela nunca promoveu efetivamente a elevação ética e espiritual do ser humano como deveria.


O cidadão cedeu seu direito à liberdade ao Estado, enquanto o homem, seu direito ao autoconhecimento à religião. Algumas poucas nações podem, categoricamente, vangloriar-se de terem acertado no primeiro caso, mas quase nenhuma haverá de admitir que o mesmo ocorreu com elas no segundo. Esperar que os governos satisfizessem as necessidades básicas da sociedade agora parece tão vão quanto achar que as religiões institucionais fossem modelos para a formação do homem íntegro. Aliás, se esta análise for feita no âmbito ocidental, onde Estado e Igreja, por longo tempo, andaram de mãos danegativo. Pelo menos, isso é o que se chega à conclusão, quando se perscruta resumidamente a história do homem em busca de sua felicidade e de sua essência – uma epopeia espiritual, repleta de derrotas e conquistas, de revoltas e sacrifícios, de crenças e desilusões, protagonizada por homens simples e “avatares.
Durante um longo período de obscuridade – da Pré-história até o surgimento da “razão” – muita coisa se produziu na mente humana e no mundo e solidificou-se como “verdade”. Exemplos disso são os mitos e os oráculos, que surgiram como pura necessidade de preencher o vazio da falta de explicação para alguns eventos dentro e fora do próprio homem. Se, por um lado, eles eram a única possibilidade de demonstrar a verdade, por outro, também davam espaço para a manipulação dessa verdade por parte dos sacerdotes, seus intérpretes. Desta forma, por falta de explicações melhores (assim como de uma exigência intelectual não desabrochada até então), quem tinha (ou tomava para si) a “autoridade de interpretar” exercia o poder de “revelar a verdade”. No mais das vezes, porém, a verdade estava longe de tudo aquilo que era dito ou ensinado, o que fez, desde então, com que a mentira e a ignorância andassem definitivamente de mãos dadas (mas quem haveria de suspeitar e questionar?!). Foi, provavelmente, nesses obscuros momentos da História que, assombrados por seus sonhos, suas visões, seus temores e suas superstições, aqueles homens de então se viram forçados a “inventar” suas “Entidades Superiores”, suas “Divindades”, seus “deuses e deusas” – uma forma de aliviarem seus espíritos, açoitados pelo terror do “desconhecido”. Assim, deram nomes, formas e atributos a tais seres sobrenaturais e iniciaram um aglomerado de práticas, cada uma das quais supostamente úteis para agradar ou aplacar a cólera dos tais “Senhores Invisíveis”.
Avatares
Grandes mestres, considerados como encarnações da Divindade. De acordo com a crença oriental, são exemplos desses mestres, que sempre vêm à Terra promover uma limpeza espiritual: Jesus Cristo, Buda e Krishna.

A ferro e fogo
Esses ritos foram sendo aprimorados e difundidos entre os povos primitivos, passando a ser praticados rigorosamente, como se, na falta deles, algo de muito ruim pudesse acontecer. Tais práticas ritualísticas certamente se modificaram ao longo do tempo, em razão da mistura de povos (conquistadores e conquistados) e da necessidade de adequação, de atualização dos costumes e dos padrões morais e culturais. No entanto, os elementos fundamentais de sua criação (poder e domínio) e os de sua manutenção (temor e adoração) continuaram os mesmos, e assim, hoje em dia, não importando a que culto esteja ligado, o fiel é um “náufrago”, que boia em pleno mar, segurando-se em duas pequenas tábuas, o medo e a esperança.
Foi, sem dúvida, dessa forma que tais cultos se perpetuaram até nossos dias, passando a ser chamados de “religiões”, muito bem guarnecidas pelos “senhores da verdade” – aqueles que se apropriaram dos ensinamentos dos “avatares” e, mantendo o rótulo, porém, trocando o conteúdo, venderam (e ainda vendem) “frascos da verdade” nas praças de mercados. E, apesar de todos os males que têm causado ao homem, em particular, e à Humanidade, em geral, por incrível que pareça, ainda conquistam adeptos (mesmo entre os homens mais ilustres e ilustrados deste planeta).
Sem qualquer conhecimento sobre o que realmente foi dito e feito pelos verdadeiros mestres da Humanidade (os avatares ), esses crentes de fé cega, seja pela condição miserável de suas vidas, seja por falta de acesso a outros escritos que confrontam as versões “oficiais” desses credos, nem suspeitam que tais doutrinas, longe de promoverem a elevação espiritual do ser humano, ocupam-se prioritariamente em tomar para si o monopólio da Verdade, produzir mentiras metafísicas, acobertar crimes contra a Humanidade, promover guerras contra os opositores de suas convicções, impedir o avanço do conhecimento e do autoconhecimento (pois, com a iluminação interior e exterior, suas tramas falaciosas viriam à luz), entre outros delitos de mesmo cunho.
As vítimas dessas doutrinas falaciosas não se encontram apenas entre os homens comuns, muitos filósofos e pensadores não foram capazes de se desvencilhar das malhas desses credos perniciosos; não perceberam nem intuíram os males advindos dali. Felizmente, outros esclarecidos não só enxergaram tais barbáries, como também se recusaram a fazer parte delas e denunciaram-nas explicitamente, como é o caso do britânico Bertrand Russell. São suas as palavras: “A igreja é perniciosa não apenas no que diz respeito à intelectualidade, mas também à moralidade”. Tal sentença é fortemente explorada ao longo de toda sua argumentação e o pensador amplia sua crítica à religião institucional ao dizer: “Minha visão pessoal a respeito da religião é a mesma de Lucrécio. Vejo-a como uma doença derivada do medo e como fonte de tristeza incalculável para a raça humana. Não posso, no entanto, negar que ela realizou, sim, algumas contribuições à civilização. No início, ajudou a estabelecer o calendário e fez com que os sacerdotes egípcios relatassem eclipses com cuidado tal que, com o tempo, tornaram-se capazes de prevê-los. Estou pronto a admitir esses dois serviços prestados, mas não sei de mais nenhum outro”.

Busca pela verdade
De um lado, não faltam, na História da Humanidade, homens cuja espiritualidade é inquestionável; homens cuja vida foi, em si mesma, uma espécie de “religião”. Homens que pareciam nada ter de especial, homens comuns, que levavam uma vida simples e normal, mas que traziam dentro de si a chama
que acalenta a sincera busca da Verdade – a ânsia de encontrar sua “essência como centelha divina”. Essa busca, inevitavelmente, aos poucos, transforma a vida simples desse buscador em uma “via para o Essencial Absoluto”, produz, na história desse “peregrino do espírito”, “o momento do insight”, “o ponto de mutação”. Assim foi para Agostinho de Hipona (354 – 405), quando vivenciou sua própria “experiência de Damasco” (referência à conversão de Saulo, de perseguidor de cristãos a apóstolo do Cristo, passando a chamar-se Paulo). Agostinho, aquele jovem buscador, conhecia suas limitações, suas fraquezas, suas imperfeições. Entre lágrimas de dor e de ameaçadora desesperança, ele sentencia, como um ultimatum: “Noverim me, noverim Te!”, ou seja: “quero saber quem sou e quem és Tu!”. Só então compreende que a busca da Verdade é a busca do homem por si mesmo, pois a Verdade só pode ser encontrada no âmago da alma humana – “qui novit veritatem, novit aeternitatem”. Ao ser perguntado, “o que lança o homem para além de si mesmo, à procura de Deus?”, Agostinho devolveu a seguinte resposta: “Fecisti nos ad Te et inquietum est cor nostrum, donec requiescat in Te” – que quer dizer: “Tu nos fizeste para Ti e o nosso coração permanece inquieto enquanto em Ti não repousar” (Confissões, 1, 1.1).
Apesar de meritórios exemplos de homens que se pode elencar, dentre os mais valiosos para o cristianismo, assim como para outros credos religiosos, por outro lado, não faltam homens cuja indecência, perversidade e ambição tentaram, pretensiosamente, esconder sob o manto sacerdotal. Não faltam no mundo seitas e religiões que abrigam em seu seio a pior espécie de homem, os piores assassinos, os maiores corruptores dos mesmos valores que fingem defender – a vida, a honra e a dignidade humanas. Dos pedófilos da cristandade aos radicais do Islã, ainda resta um cortejo de falsos milagreiros, profetas do fim do mundo, santos dos últimos dias, gurus de Rolls-Royces, corretores das moradias celestiais, sacerdotes do capital ilícito e discípulos dos psicotrópicos, entre outros. “Sobrecarregada está a terra dos muitos-demais”, assim nos alertara o filósofo alemão, Friedrich Nietzsche, em seu Assim falou Zaratustra, contra essa dissimulada espécie de “rebanho”. “Quem tem ouvidos para ouvir, ouça!”, também não custa acrescentar. O afã indomável, que há no ser humano, de retornar ao seio de sua “matriz” é legítimo, mas, ao mesmo tempo, torna-o vulnerável à malignidade dos prestidigitadores espirituais.
Ao cair nas malhas dessa religiosidade de mercado, os denominados “fiéis” nem sequer percebem a distância que há entre os ensinamentos dos grandes mestres da humanidade (os avatares) e as doutrinas de homens comuns a que se fidelizaram. O que me faz recorrer, novamente, a Bertrand Russell, na obra já citada, ao dizer: “Peguemos como exemplo o caso que mais interessa aos integrantes da civilização ocidental: os ensinamentos de Cristo, tal como aparecem nos evangelhos, têm tido extraordinariamente pouco a ver com a ideia dos cristãos. A coisa mais importante sobre o cristianismo, do ponto de vista social e histórico, não é Cristo, e sim a Igreja, de modo que, se formos julgar o cristianismo como força social, não devemos recorrer aos Evangelhos em busca de material”. O pensamento do ilustre britânico não se restringe a essa “fissura” cristã, ou seja, essa “sutil” diferença entre o que é propriamente do Cristo e o que é sumariamente da Igreja (lembremos da exortação do Nazareno: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é Deus”). Um pouco mais adiante, na mesma obra, Russell acrescenta: “O que é verdadeiro a respeito do cristianismo é igualmente verdadeiro a respeito do budismo. Buda era amável e iluminado; em seu leito de morte, riu dos discípulos que o julgavam imortal. Mas o sacerdote budista – tal como ele existe, por exemplo, no Tibet – tem sido obscurantista, tirânico e cruel no mais alto nível. Nada existe de acidental em relação a essa diferença entre uma igreja e seu fundador”.

Dogmas institucionais
Peço licença ao nobre pensador britânico apenas para fazer uma pequena ressalva sobre seu texto: nenhum dos avatares (Cristo, Buda ou qualquer outro) foi fundador de qualquer das pretensas religiões institucionais, que se apropriaram e monopolizaram seus nomes, suas vidas e seus ensinamentos (este é outro fato que os rebanhos de fiéis jamais se preocuparam em constatar); enquanto os ensinamentos desses grandes mestres tendiam para a libertação de seus seguidores do jugo do autoritarismo político, social e religioso e para a boa relação entre os povos, essas instituições religiosas transformaram em dogmas ou em “mistérios divinos” cada palavra proferida, criando dissensões e promovendo a intolerância entre as nações de credos diferentes, apenas para favoreceremse e firmarem-se como “donas da verdade” e, assim, dominarem seus rebanhos de crentes.
Dito isto, retorno a Russell, para “ouvir”, mais uma vez, próprio filósofo dizer aquilo que, com minhas palavras, talvez soasse sem o mesmo brilho: “Logo que se supõe que a verdade absoluta está contida nos dizeres de certo homem, eis que surge um corpo de especialistas para interpretar seus dizeres, e esses especialistas invariavelmente adquirem poder, já que detêm a chave para a verdade. Assim como qualquer outra casta privilegiada, usam seu poder em benefício próprio. São, no entanto, sob certo aspecto, piores do que qualquer casta privilegiada, já que seu negócio é expor uma verdade imutável, revelada de uma vez por todas em perfeição absoluta, de modo que se transformam necessariamente em oponentes de todo progresso intelectual e moral”.
Questionada mais a fundo, mais filosoficamente, esse tipo de religiosidade institucional, no mais das vezes, se demonstra, além de falaciosa, ilusória, como podemos perceber nas palavras do filósofo de Königsberg, Immanuel Kant (1724 – 1804), em seu A Religião nos Limites da Simples Razão: “Ora, considerar de uma maneira geral essa fé estatutária (que, sempre limitada a um povo, não pode encerrar a universal religião do mundo) como essencial para o serviço de Deus e fazer dela a condição suprema para que o homem seja agradável a Deus, aí está uma “ilusão religiosa”, e conformar- se a ela constitui um falso culto, ou seja, uma falsa adoração a Deus que é, na realidade, um ato contrário ao culto verdadeiro exigido pelo próprio Deus”.



Como disse já anteriormente, outros homens não se deixaram apanhar nas teias dessa aranha hipnotizadora que é a religião institucional, a despeito dos males e das perseguições que sofreram por causa disso. Todos nós, homens e mulheres do Ocidente, sabemos da chamada “caça às bruxas” da Igreja Católica Apostólica Romana, que, com sua “Santa Inquisição”, também perseguiu e torturou pensadores e cientistas que estavam “em desacordo” com suas ideias, interesses e ideais. Os homens e mulheres, de todos os tempos, nos quatro cantos do mundo, mormente aqui no Ocidente, que se preocupavam ou se ocupavam com “fazeres benéficos” ao avanço sociocultural e espiritual do Homem, sentiram na pele os entraves que representam essas grandes religiões ao progresso científico e à busca filosófica do ser humano por seu fundamento verdadeiro. Um desses homens foi Franciscus Van den Enden (1602 – 1674), também conhecido como Affinius (seu nome latinizado), instrutor de latim de Baruch de Spinoza e influenciador de sua vertente filosófica. Van den Enden considerava que “se a igualdade e a iluminação, no sentido de compreender a verdade das coisas, são prérequisitos essenciais para a riqueza comum e duradoura, então, uma república viável é inconcebível sem o fim da religião organizada, a qual não é nada além de um instrumento político para disciplinar e controlar o povo por meio da ignorância e credulidade”.
Outras vozes se levantaram contra o poder da Santa Igreja e deixaram sua marca de oposição em frases bem objetivas. Friedrich Nietzsche (1844 – 1900), por exemplo, declarou a morte da Igreja de Roma e suas dissidências a partir da morte de seu fundamento capital – “Deus está morto!” (Assim Falou Zaratustra); Karl Marx (1818 – 1883), percebendo a forma como a religião destrói no homem seu ímpeto de revolução diante das injustiças sociais, bradou: “A religião é o ópio do povo!” (Crítica da Filosofia do Direito de Hegel); (Crítica da Filosofia do Direito de Hegel); rebelando-se contra a intermediação de certos homens entre o buscador da Verdade e Deus, Jean-Jacques Rousseau (1712 – 1778) reclamou: “Quantos homens entre mim e Deus!” (Emílio, livro IV).
Enquanto multidões de fiéis incautos se acotovelam para receber a bênção, a instrução ou o darshan de seus padres, pastores e gurus, na verdade, o que temos é um sem-número de inocentes, que se deixam enganar por milagres teatrais, que sofrem a usurpação de seus bens ou que são iludidos com o fato de que foram tocados por uma encarnação divina. É claro que deve haver autênticos “avatares”, sacerdotes e gurus, assim como há autênticos buscadores da Verdade, mas já é mais que hora de separarmos o joio do trigo.

* Artigo publicado na Revista Filosofia - Conhecimento Prático Nº25.

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