quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Incursões no universo nietzscheano


Um Dançarino Chamado Zaratustra
Por Jaya Hari Das*
                        

                   Indubitavelmente, Assim falou Zaratustra é a obra que mais se identifica com seu autor; é a digital, a marca registrada de Friedrich Wilheim Nietzsche e seu maior legado à humanidade. Nela, encontram-se a Filosofia e o ideal nietzscheanos. O filósofo e Zaratustra confundem-se em uma só e mesma personalidade arquetípica - Zaratustra é, de certa forma, o alter-ego de Nietzsche. É por meio do personagem que o autor apregoa seu evangelho do advento do super-homem; é por meio dele que exerce sua espiritualidade, sua religiosidade negada. A religião de Níetzsche é o amor à terra. O seu "pathos" de religare é o puro e inocente retorno à terra, à natureza. "Eu vos rogo, meus irmãos, permanecei fiéis a terra, e não acrediteis nos que vos falam de esperanças ultraterrenas!"

                    A fé e a esperança encontradas nesse evangelho são puramente terrenas, são realizações no próprio destino histórico da humanidade; o futuro construído no hoje, aqui e agora; a corda estendida sobre o abismo, em direção ao super-homem — o único advento fiel ao sentido da terra, que ao invés de caluniá-la, condená-la, exterminá-la, produzirá a redenção de seus filhos.

                    Zaratustra é um dançarino - pois a vida é música, alegria, harmonia. O maior crime é não amar a vida, o maior delito é negar a filiação à terra, não viver potencialmente e não deixar um deus dançar dentro de si. Nietzsche ama a vida, e por isso quer dançar, malgrado seu estado doentio, quiçá, por isso mesmo, ele quer dançar. Qualquer um que tenha um deus dentro de si quer dançar; tudo o que tem "vontade de potência" dança - o universo dança sua "dança de inocência e prazer". O universo nietzscheano baila... Zaratustra, indubitavelmente, é um baílarino!

                    Zaratustra é também profeta, do ontem e do amanhã. Anuncia o que já foi - "Deus morreu"-, e o que há de vir - "o homem é algo que deve ser superado". Mas deve-se ter cuidado ao usar e tentar interpretar palavras como "profeta", "evangelho", "esperança", pois estes são termos que devem ser tomados como novíssimos axiomas, tocados miraculosamente pela total transvalorização de todos os valores e, preferencialmente, em um sentido contrário a tudo que soar religioso. O profeta nietzscheano anuncia exatamente o que o rebanho - os cristãos - não quer ouvir. Seu evangelho desagrada aos ouvidos daqueles que necessitam de mando, dos que dobram os joelhos, dos que procuram antes obedecer. O profeta nietzscheano tem tábuas de dez mil desobediências e fardos pesados para os "muitos-demais". Sua pregação não quer ouvintes ou seguidores - o pregador teme um dia ser acusado de construir uma nova gaiola, fundar uma nova religião.

                    O profeta nietzscheano anuncia o novo "evangelho" aos "espíritos livres", mas não os comanda. Liberdade aqui é estado de "potência", não há má consciência a reparar, não há joelhos a dobrar. Aquele que é livre guia a si mesmo, no entanto, percebe que não está solitário, tem boa companhia - quem ama "os espíritos livres" não carrega "mortos" consigo, antes e inexoravelmente arrasta, com seu bailar, "os vivos" de toda a terra. Assim baila Zaratustra.

                    O perfil psicológico do profeta nietzcheano é de um homem amadurecido, que padece em sua alma do peso do tempo e da experiência — o peso da sua extemporaneidade. Seu raciocínio é pleno de vontade de potência - fecundou a própria mente, que agora prenhe, tem dores de parto, quer dar à luz o super-homem. O profeta é o pai e avô de todos os "espíritos livres", dos homens do porvir, da nova humanidade; ele ama os homens com seu amor terreno, instintivo, um amor que não exige mais do que pode dar, cujo sacrifício é a própria superação, que do seu ocaso o advento do super-homem.

                    Acima de tudo, Zaratustra é, também, um ladrão. Atrair para fora do rebanho é sua missão; fazer a multidão irar-se contra ele e confundir-se, abalar seus valores e desbaratá-la - "ladrão, quer chamar-se Zaratustra para os pastores." Repugnam a Zaratustra os pregadores da morte, os caluniadores da vida, os sem-amor à terra. "Há pregadores da morte, dizia o bailarino-filósofo; e a terra está repleta de gente à qual deve pregar-se que abandone a vida (...) Repleta está a terra de gente supérflua, estragada está a vida pelos muitos-demais. Possa a "vida eterna" atraí-los para fora desta vida!".

                    Em suma, Zaratustra é o que todo homem em sã consciência deve querer ser - livre, em paz consigo e com a terra, isento de todo sentimento de culpa, destituído de todo pecado - numa palavra, um ser que dança, pois a vida é dança e harmonia.
                                                 
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Fonte: Revista Filosofia - Ciência & Vida (ano I, número 4).

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