segunda-feira, 18 de abril de 2011

PLATÃO E A TRANSCENDÊNCIA

O tempo em que fomos Platão
18/04/2011

O filósofo estadunidense Richard Rorty conta que, quando criança, tinha nas orquídeas selvagens – não catalogadas, talvez desconhecidas de todos – tudo que precisava para acreditar que ele, ao contatar com elas, estava diante de uma realidade mais real que qualquer outra – o verdadeiro real. Tenho certeza que Rorty não foi o único menino a ter essa impressão. Um amigo contou-me certa vez que ele, quando criança, se deparou com um arranjo peculiar em uma caixa de ferramentas há muito esquecida na garagem de seu pai, e eis que aquele arranjo lhe pareceu nitidamente dirigido a ele, como se o cosmos quisesse lhe dizer algo – “eis aqui o segredo, a realidade, aqui você está diante do que é a verdadeira realidade”. Depois desse episódio, o arranjo voltou a se fazer presente em outras situações, também peculiares, confirmando a existência da realidade pronta para mostrar sua mensagem secreta a respeito de sua própria existência. Há quem tenha essa vivência com figuras como, por exemplo, o Papai Noel. Pode-se saber que o Papai Noel nada é senão um personagem comercial e, ao mesmo tempo, acreditar que há um verdadeiro Papai Noel, ligado aos Céus e que se apresenta única e exclusivamente para quem sabe dessa verdade.

Essas impressões infantis são um despertar para a metafísica. Quem passou por elas, quando as perde, sabe que perdeu o contato com o que era a Realidade. Pode perfeitamente entender que uma tal impressão, tão forte, satisfazia algo como uma necessidade metafísica. Alguns transformam essa predisposição para a metafísica em busca religiosa, embrenhando-se na construção de um plano de vida, em geral preparado na pré-adolescência, associado a algum elemento místico ou a uma tendência à peregrinação em torno do encontro ou re-encontro com a Realidade (com R!). Outros transferem essa busca pelo que está secretamente escondido nas entranhas do universo, e só revelável a alguns, para a beleza dos olhos e cabelos de uma garota da classe de escola ou, mesmo, para uma moça mais velha ou até uma mulher[1]. Outros, ainda, dão indícios de que poderão buscar na filosofia esse contato com a Verdade. Essas três situações não são excludentes. Há quem dê testemunho de ter vivido as três possibilidades conjuntamente.

A sensação de que se é privilegiado, de que há algo no universo que permite que seu segredo seja revelado, e que é possível entrar em contato com o que é transcendente a esse mundo, mas que deixa pistas aqui mesmo, para que se possa contatar com o real, não é uma experiência tão incomum quanto imaginamos em um primeiro momento. Isso que passamos quando crianças na transição para a pré-adolescência, talvez tenha sido aquilo que os gregos que se dedicaram à filosofia tenham passado quando jovens adultos. Uma carência metafísica pode dar vazão às buscas religiosas ou amorosas. O verdadeiro real, a Realidade, pode ser procurada no Bem, mas pode também, nós sabemos, ser procurada no Belo. Verdade, Bem e Belo – nos três casos, somos conduzidos pelo amor. Se formos capazes de nos lembrarmos dessas nossas experiências, vamos ver que Eros, a força do amor, estava presente todo o tempo em qualquer uma delas. Quem passou por isso teve a melhor introdução à filosofia de Platão que poderia ter. Platão foi, quando adulto, exatamente esse menino que alguns de nós fomos. Platão, uma vez adulto, foi Richard Rorty ou um de nós quando crianças.

Quem passou por isso pode, com facilidade, ler Platão e se reconhecer nessa experiência maravilhosa que é ter sido metafísico sem ter lido nada, sem ter estudado. Pessoas assim são as que se abriram para a filosofia – o platonismo. A filosofia, como Platão a criou, é um sistema tipicamente infantil e pré-adolescente de se relacionar com o mundo. É uma sofisticação engenhosa de um sentimento que, verdadeiramente, só temos quando ainda não adultos.

Platão nunca se tornou adulto. Diferente de outros, ele não se casou e, enfim, fez o que todos os filósofos do tipo dele fazem: montou uma escola para poder permanecer entre os jovens, para ficar jovem. Platão foi o mais autêntico dos devotos da filosofia, ou melhor, da Filosofia. Toda a filosofia platônica é um terrível esforço de construção pela razão adulta do que nada foi senão esse passeio com Eros que fazemos quando crianças e pré-adolescentes, indo das orquídeas de Rorty para garota linda e dela para a religião. Não à toa, na adolescência, Rorty abraçou o platonismo, do qual só saiu mais tarde, principalmente após ter terminado a graduação em filosofia.

Todo filósofo autêntico tem uma certa nostalgia de seu tempo platônico.

© 2011 Paulo Ghiraldelli Jr. Filósofo, escritor e professor da UFRRJ, autor, entre outros, de Introdução à Filosofia de Donald Davidson (Rio de Janeiro: Multifoco, 2011).

[1] E isso vale, com as devidas trocas, para a menina e para os que já se descobrem com orientações homossexuais.

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