quinta-feira, 31 de março de 2011

A FILOSOFIA QUESTIONA A LIBERDADE

A QUESTÃO DA LIBERDADE


Segundo a definição encontrada no Aurélio, “liberdade é a faculdade de cada um se decidir ou agir segundo sua própria determinação”. A partir daí, parece-me relevante investigar se “determinar-se a fazer algo” pressupõe, já em si mesmo, ter as condições para tanto, isto é, não estar-se sujeito nem a obstáculos insuperáveis, nem a coações ou repressões de qualquer ordem. Creio ser necessário examinar se é possível aos homens, em todas as instâncias de sua existência, ou pelo menos em alguma delas, um nível de liberdade incondicional, ou absoluta. Em outras palavras, proponho uma investigação sobre a possibilidade de haver “liberdade” na condição humana de existência e, caso haja, que tipo de liberdade será essa.
Pode-se falar de ‘liberdade natural’, ‘liberdade política’, ‘liberdade de expressão’, ‘liberdade de credo’, livre arbítrio etc, etc. Portanto, logo se vê, pela complexidade do tema, que a discussão, ou problemática da liberdade, foi e sempre será um desafio para a Filosofia. Dependendo do âmbito em que se trata, ao ser humano é atribuído maior ou menor grau de liberdade, ou mesmo liberdade nenhuma.
Perscrutando os anais da História da Filosofia, percebemos que, em todos os tempos, sempre houve defensores e teóricos da liberdade que fomentaram esta polêmica temática. Aristóteles é um dos primeiros a tratar deste tema em seu Ética a Nicômacos, quase 400 anos antes de Cristo. Ali, liberdade é considerada como um ‘ato voluntário’ de escolha entre alternativas possíveis. Vista assim, parece bastante razoável, mas a verdade é que o pensador grego estava longe de imaginar os desdobramentos da vida social do homem e as consequências de um ato movido puramente pelo “querer”. O homem grego, pós-mitológico, acreditava que a Razão seria suficiente para provocar nos seres humanos atos virtuosos, de tal forma que sua própria vontade seria a manifestação da ‘virtude’. Mas o passar dos séculos não provou isso. Questiona-se até mesmo se ‘virtude’ pode ser exercitada, que dizer então de ‘exercida’? Se todos nós pudéssemos fazer tudo quanto tivéssemos vontade, muitos de nossos atos extrapolariam os limites de nossos direitos, invadindo os dos outros e pondo em cheque-mate o fluxo salutar das relações humanas.
Os estóicos, ainda no período helenístico, retomam a questão da liberdade, conservando ainda a ideia aristotélica de que ela é autodeterminação ou causa de si, porém diferem de Aristóteles afirmando que liberdade não é a escolha feita pela vontade individual, e sim do todo, do qual os indivíduos são partes. Espinosa e Hobbes, e mais tarde Voltaire, pareciam concordar em que “somos livres para fazer alguma coisa quando temos o poder de fazê-la”. E nisso fomos ficando até o século XVIII.
O filósofo Jean-Jacques Rousseau inicia seu Do Contrato Social dizendo que “o homem nasce livre e, por toda parte, se vê em grilhões”. Com esta sentença, o pensador acusa a instauração do ‘estado de direito’ como entrave à ‘liberdade natural’ do homem. Essa postura acusatória mostra, logo de cara, que o pensador francês seria ainda mais polêmico do que seus antecessores britânicos, Hobbes e Locke. Rousseau é um dos primeiros, senão a perceber, pelos menos a denunciar o quanto o homem perdeu de liberdade com o pacto social. Qualquer pessoa pode perceber claramente que lhe é impossível fazer tudo quanto quiser, uma vez que vive em sociedade e precisa respeitar os códigos de conduta social. Mesmo em seu lar, o homem tem outros membros da família para respeitar ou dar satisfação, do que faz e do que não faz. Não basta querer fazer tal coisa, pois a vontade de cada um de nós não pode por si só determinar nossas ações. Estão ali entrelaçados fatores sociais e existenciais, que dizem respeito ao homem e sua comunidade, ou somente a ele individualmente. Este é outro conceito de liberdade – ou seja, a capacidade do ser humano de exercer sua vontade sem constrangimentos ou coerções.
A questão de ser livre desde o nascer, o direito natural, como defendido por Rousseau, teve muitos simpatizantes e serviu como ‘bandeira’ de alguns movimentos sociais, mas, quando olhamos com seriedade para as prováveis consequências de sua aplicação na vida atual, podemos chegar até mesmo a considerá-lo maléfico e, felizmente, também utópico. A liberdade desejada pelo homem é da mesma natureza da felicidade que ele sempre almejou: parece estar logo ali, mas, para o nosso desespero, inalcansável. Talvez a maior dificuldade em sua abordagem seja a insistência de que ela deve ser incondicional e absoluta num mundo onde tudo está sob condições e nada é absoluto.
Marilena Chauí, em seu Convite à Filosofia, lança a seguinte pergunta, que qualquer um de nós haveria de nos fazer: “Se o mundo é um tecido de acasos felizes e infelizes, como esperar que sejamos sujeitos livres, se tudo o que acontece é imprevisível, fruto da boa e da má sorte, de acontecimentos sem causa e sem explicação?”. E ainda: “Não escolhi nascer numa determinada época, num determinado país, numa determinada família, com um corpo determinado. As condições de meu nascimento e de minha vida fazem de mim aquilo que sou e minhas ações, meus desejos, meus sentimentos, minhas intenções, minhas condutas resultam dessas condições, nada restando a mim, senão obedecê-las. Como dizer que sou livre e responsável?”.
O pensador francês, Jean-Paul Sartre tem uma frase famosa em que diz: “estamos condenados à liberdade”. Sua máxima pretende que o homem seja responsável por todas as suas decisões, que a cada momento de sua vida, cada opção seja determinante de tudo que se dará em sua existência. Em outras palavras, saber escolher ou decidir é igual a saber viver. Por este prisma, deixam-se de lado as circunstâncias existenciais, que poderiam muito bem ‘coagir’ o homem a fazer não o que quer, dentro das possíveis opções, mas o que não quer, por falta de opção – e mesmo assim, continuaria ele responsável pelo que viria depois –, estabelecendo-se então aí um dilema insuperável. Essa visão sartreana de liberdade cai como uma luva para a teoria do ‘livre-arbítrio’, elaborada pelo apóstolo Paulo e elevada exponencialmente por Santo Agostinho. Aqui, escolher entre o ‘bem’ e o ‘mal’ está disponível ao homem como exercício autônomo de sua vontade, prova capital de que Deus nos fez e nos quer ‘livres’, no entanto, fica preestabelecido conjuntamente que deliberar-se pelo ‘mal’ é ser condenado a perder o Paraíso, o que põe em xeque, novamente, a validade de tal liberdade, pois, seguindo a linha de pensamento de Monsieur Sartre, seria mais apropriado dizer que “estamos condenados a ser livres no Inferno”, ou por outra, que “somos livres para ao Inferno quando bem desejarmos”.
Tanto no pensamento existencialista quanto na doutrina cristã a palavra ‘livre’ soa menos como ‘responsável’ e mais como ‘culpado’, uma vez que para o Existencialismo o homem não teria uma ‘essência’ – algo de anterior ao seu nascimento no mundo -, e, sim, apenas existência – a partir da qual se pode dizer algo sobre ele (que redundaria numa conclusão mais ou menos assim: “dize-me o que fizeste e te direi quem és”); enquanto, para o Cristianismo, somos herdeiros do “pecado original”, praticado por Adão e Eva, como primeiro ato de ‘plena liberdade’, no início dos tempos. Em suma, o existencialista ‘culpa’ o homem pelos males que, porventura, encontrar em seu caminho (sua existência), enquanto o cristão o acusa de ser desde o berço um ‘fruto da desobediência’ (ou seja, da liberdade mal-exercida). Ai de nós, que só queríamos ser livres, um pouquinho que fosse!
Diante de tantas forças em contrário às nossas vontades, a noção de liberdade passa a se delimitar a um campo puramente subjetivo. Por exemplo: para aquele que passou anos na prisão, o fato de findar sua pena, representa a retomada de sua liberdade, porém, para homens excelsos, como Mahatma Gandhi (líder político-religioso, responsável maior pela libertação da Índia do domínio britânico), ser colocado na prisão representava uma ótima oportunidade de descansar da agitação política lá de fora; na prisão, ele tinha tempo, tranqüilidade e liberdade para ler, meditar e elaborar seus escritos. Esse pequeno grande homem parecia saber muito bem o preço da liberdade, por isso chegou a declarar: “Nunca sacrificarei a verdade e o ahimsa, nem pela liberdade de minha pátria”.
Os poetas, assim como os pensadores, também elaboraram sonetos, quadrinhas e versos tendo a liberdade como tema. Mas a estes devemos perdoar, uma vez que diferentemente da Filosofia, a arte poética é lúdica, visionária, imaginária e, por isso mesmo, utópica. De braços dados com a poesia voeja célere nosso ‘sonho de liberdade’. Sonhar que somos livres não desabona nossa condição de homens adultos, do mesmo modo, crer que não o somos não nos deve angustiar – há sempre uma réstia de possibilidade no improvável – seja o sonho, seja a descrença. O ser humano pode, poeticamente é claro, elaborar proposições românticas, como “sou livre porque sou sujeito de todas as minhas experiências”, “as condições preestabelecidas em minha vida não são obstáculos à minha liberdade, pois é em meio a elas que exerço o meu direito de ser eu mesmo”, “determinar-me de que quero é bem mais do que saber se é possível, ou mesmo provável”, etc, etc. Mas tudo isso não passa de romantismo barato – não filosofia, menos ainda realidade. Nenhum poeta pretendeu dar cabo da questão da liberdade, nenhum filósofo foi suficientemente bem-sucedido nesta tarefa. Os códigos éticos, aliados às leis jurídicas e seus mecanismos de repressão e punição, cumprem, bem ou mau, seu papel em meio a uma sociedade de homens de virtude frágil e de liberdade vigiada, nesse contexto, o direito de ir e vir ou de se expressar livremente pode, aqui ou ali, ser preservado ou não.
Assim como a história grega antiga nos fala das Parcas ou Moiras, que representavam o destino que é imposto a cada um de nós pelos deuses, do nascimento à morte, as tradições orientais nos falam do Karma, a lei universal de ação e reação, que é bem diferente, diga-se de passagem. Essa lei cármica é, segundo os hindus, a justa medida de retribuição, de encarnação em encarnação, por tudo que até aqui tenhamos feito, que diga respeito ao que denominamos de Bem ou Mal e, apesar de não termos a possibilidade de em um única existência (necessariamente a atual, pois é nela que gozamos, sofremos e sentimos a própria vida) perceber que o que nos acontece é ‘merecido e justo’, eu, particularmente, jamais encontrei, em minha pesquisa sobre a liberdade do homem, resposta mais plausível e válida para essa questão. É claro que quando coisas ruins ou desagradáveis nos acontecem, como uma doença ou o falecimento de alguém que amamos, naturalmente somos tentados a reclamar, dizendo que não merecemos aquilo e perguntando “por que então nos aconteceu?”, por outro lado, jamais reclamaríamos da sorte de ganhar um grande prêmio lotérico ou escaparmos de um acidente fatal, por exemplo. Esses exemplos podem parecer distantes da questão em debate aqui, ou seja, a de sermos ou não livres, mas não estão, não. Se realmente for verdade, como creio, que os fatos atuais são consequências de nossos atos passados, tenham sido eles praticados sob qualquer condição, vontade, tendência ou coerção, ficará comprovada a existência de uma liberdade que nos foi dada provavelmente muito antes que pudéssemos saber o que era “liberdade”.

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