terça-feira, 6 de maio de 2014

A BARBÁRIE DA PÓS-MODERNIDADE

O ANIMAL EM NÓS

A existência humana demonstra-se, acima de tudo, como a luta pela sobrevivência, o que poderia até ser aceitável, uma vez que assistimos no espetáculo que a Natureza nos apresenta à grande e permanente guerra que é travada entre as várias espécies animais. No entanto, o que causa espanto (ou, pelo menos, deveria causar) é que a guerra dos humanos se dá entre os da mesma espécie – o homem contra o homem. Paira ainda sobre a humanidade a máxima “bellum omnium contra omnes” (guerra de todos contra todos), ou, como ficou mais conhecida na obra Leviatã, do filósofo inglês Thomas Hobbes, "Homo homini lupus" (o homem é o lobo do homem). Vivemos ameaçados por nós mesmos, uns contra os outros, numa guerra insana que faz suspeitar se somos mesmo seres da racionalidade e se esta tem verdadeiro poder sobre nossas ações e decisões. A barbárie que praticamente presenciamos todos os dias ou acompanhamos pela mídia em geral já bateu todos os limites do que denominamos absurdo. A violência avança não só nas grandes cidades, como era décadas atrás, ela se disseminou por toda parte, num índice sem precedentes. Não há mais como nos enganar – o inimigo mora dentro de nós.

Embora a História ponha em destaque apenas as duas Grandes Guerras e dê menor importância a muitas outras travadas da Antiguidade até aqui, provavelmente não há no mundo um único lugar (vilarejo, cidade ou região) que se possa encontrar sem qualquer vestígio de conflito humano – há, certamente, por toda parte, brigas entre duas ou mais pessoas, familiares ou vizinhos, ou entre grupos, famílias ou setores da sociedade. Como escrevi no artigo “Demasiado humano?” (revista Conhecimento Prático – Filosofia Nº29, ed. Escala), “Em algum recanto do mundo, neste instante, há um conflito, talvez grande ou pequeno, mas certamente sério o suficiente para nos pôr em alerta contra nós mesmos. O mundo jamais conheceu um único momento de verdadeira paz, em todos os lugares, ao mesmo tempo. Se a racionalidade ainda não foi capaz de instituir um contrato social baseado no respeito pela alteridade de indivíduos, povos e nações, e se o sentido de responsabilidade no homem, até o presente momento, não foi suficientemente rigoroso em firmar as bases de uma justiça social abrangente, então, tampouco, ou dificilmente, o ideal de felicidade poderá ser alcançado aqui na terra, a despeito dos avanços científicos, da melhoria na qualidade de vida, dos tratados filosóficos, da exortações religiosas e dos esforços dos homens de boa vontade que ainda existam por aí”. As leis são inócuas contra as desavenças humanas; as punições, ineficazes. Quando todos se acham com a “razão”, ninguém está a salvo!

Alguém disse certa vez que numa guerra a primeira vítima é a Verdade, eu diria, porém, que, antes dela, a vítima foi a Razão. Na verdade, a Existência em si é um palco multifacetado de conflitos; a Existência é em si mesma um “Grande Drama”, recheado de dramas menores. Já o disse Heráclito: Pólemos pánton patér (O conflito é o pai de todas as coisas). No homem, no entanto, era de se crer que esses dramas, a pouco e pouco, encontrassem desfechos razoáveis, e que alguns até pudessem ser evitados. Porém, o que se vê é um aumento galopante de sua perniciosidade e periodicidade. O bem e o mal são componentes inexoráveis da Existência e encontram no ser humano uma expressão inigualável, jamais possível de ser encontrada nas outras espécies animais, destituídas de raciocínio. A malignidade humana confere a certos atos de violência os chamados “requintes de crueldade”, de que só o homem é capaz. O holocausto perpetrado pelos nazistas contra os judeus é um dos exemplos maiores dela. Todos os anos, os cristãos revivem o martírio do Cristo na cruz, condenado pelos hebreus a sofrer tal morte, segundo as leis romanas de dois mil anos atrás. Tais fatos, assim como um bilhão de outros já ocorridos, relembrados de tempos em tempos, ainda não foram suficientes para causar uma reforma moral e existencial do homem. O sangue humano derramado até hoje sobre a Terra seria suficiente para manchar todos os nossos oceanos, mares e rios, se assim a Natureza (ou Deus, seja lá o que for) resolvesse deixar que acontecesse, para nos fazer lembrar quão sanguinários nós somos. Talvez assim, o medo ou a vergonha de nós mesmos nos fizesse parar de matar. Mas apenas “talvez”.

Aqui mesmo no Brasil, recorrentemente somos chocados com fatos que escapam à nossa capacidade de compreensão, atos criminosos, como o dos bandidos que atearam fogo numa dentista, somente porque ela tinha pouco dinheiro na conta bancária, e o dos que, aqui em São Luís do Maranhão, puseram fogo num ônibus cheio de passageiros, causando a morte de uma menina e queimaduras gravíssimas em pelo menos mais três pessoas. Não fica de fora desse ranking dos horrores as brigas entre torcidas rivais, nas quais torcedores de times de futebol diferentes não são apenas adversários no esporte, são verdadeiros inimigos, que, por isso mesmo, devem se matar mutuamente, antes, durante ou após as partidas. O caso mais chocante (para dizer o mínimo) foi o do torcedor do Sport Recife, atingido e morto por um dos dois vasos sanitários, atirados de cima da arquibancada, contra ele e os amigos que deixavam o estádio do Arruda em Recife, após a partida entre Santa Cruz e Paraná. A pergunta que nos vem logo de cara é “Que tipo de ser humano é esse, que arranca vasos sanitários de banheiros do estádio, para arremessá-los contra outros seres humanos, somente porque não concorda com a opção destes em serem torcedores de outro clube, e não é do seu?”. A resposta é simples: “Um monstro!” – o mostro que há em nós. Ou talvez “o animal”!

Na Europa, há tanto tempo já civilizada, alguma coisa ainda não desatrelou a errônea noção das raças superiores e inferiores, ou o pensamento retrógrado escravagista, da sociedade que estabeleceu e tenta zelar pelos Direitos Humanos. O racismo impera em estádios da Espanha, nos quais jogadores negros são chamados de macacos, denunciando que. em algumas sociedades europeias. há pelo menos indivíduos (esses agressores racistas) que ainda não atingiram o nível da civilização. O brasileiro Daniel Alves reagiu com espirituosidade quando, durante a partida de domingo (27/04) entre Vilarreal e Barcelona, pelo campeonato espanhol, um torcedor atirou próximo dele, dentro do campo, uma banana (numa evidente tentativa de referir-se a ele como “macaco”). Ele pegou a fruta atirada e comeu. Isso repercutiu controversamente nas redes sociais e nos jornais do mundo inteiro. Aqui no Brasil, um movimento autodenominado “somos todos macacos” apareceu em apoio ao jogador brasileiro, mas desagradou outras pessoas, que começaram a protestar contra a ideia de serem comparadas a macacos (houve até manifestações em favor dos macacos). O que diria Charles Darwin sobre tudo isso, se vivo fosse?

A barbárie é um fenômeno que às vezes demonstra-se sazonal, outras, endêmico. Ela às vezes parece que se autojustifica, outras, que é justificada pela população, ou por um certo número de pessoas. A barbárie não tem escrúpulos, não tem rosto, mas pode parecer justificável e até agradável para alguns (o que é inexplicável no ser humano, é inexplicável). Esse "inexplicável" encontra-se, por exemplo, no caso de uma dona de casa de 33 anos, de nome Fabiane Maria de Jesus, que foi torturada até a morte por dezenas de moradores, na noite de sábado (03/05), no bairro de Morrinhos, no Guarujá, litoral de São Paulo, somente porque um site postou um retrato falado de uma suposta praticante de magia negra que, também supostamente, costumava sequestrar crianças para fazer com elas rituais macabros. Sem pensar duas vezes, moradores próximos da residência da dona de casa, achando que ela fosse a mesma da foto, trataram de se livrar da “bruxa má”, linchando-a até desfalecer sem vida (e que o diabo se encarregasse do resto, devem ter pensado os justiceiros pós-modernos, ao estilo do que também devem ter pensado os algozes da Igreja, no tempo da Santa Inquisição).

Estaríamos todos muito mais seguros se houvesse de fato um animal selvagem à solta em nossa vizinhança. Escondido em tocas instintivamente buscadas, para atacar de surpresa qualquer um de nós que por perto dele passasse, ou então que pulasse os muros de nossas casas e as invadisse, nos fazendo ter que enfrentá-lo cara a cara, com seu olhar de fome de nossa carne e sede do nosso sangue. Se o nosso inimigo fosse esse animal selvagem fictício que descrevo e houvesse neste instante um em cada lugarejo que possamos imaginar no mundo, haveria certamente muitas vítimas deles – pelo menos uma em cada lugar, mas também sem dúvida ele seria dominado e capturado, de uma forma ou de outra. Infelizmente, meu relato é apenas um símile muito aquém da realidade. Não há nenhum animal solto pelas ruas, que se tenha notícia no momento (embora seja possível, mas ainda assim improvável e desinteressante para o mote deste artigo). Infelizmente, mais uma vez, o animal não está à vista ou escondido num covil ou toca. Curiosamente, ele está sob a guarda e a proteção daqueles a quem fatalmente irá devorar. O verdadeiro e real animal selvagem que é o protagonista deste nosso drama existencial real está dentro em nós, e, em vez de correr pelas ruas em busca de sua presa, ele se infiltra e se multiplica na multidão, e ali mesmo faz o seu banquete – a carnificina humana.

THE END, NO!
TO BE CONTINUED...

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