quarta-feira, 24 de setembro de 2014

SCARLETT MARTON COM A PALAVRA

EUTANÁSIA: A FAVOR OU CONTRA?*
Por Scarlett Marton

A eutanásia tornou-se uma questão central nos debates de Bioética na atualidade. Em geral, distingue-se a eutanásia da ortotanásia e da distanásia. Por eutanásia entende-se a conduta médica que apressa a morte de um paciente incurável e em terrível sofrimento. Vista por alguns como um suicídio assistido, a eutanásia inscreve-se numa situação em que o paciente quer morrer, mas, por incapacidade física, não consegue realizar sozinho o seu desejo. Aliás, no seu sentido etimológico, eutanásia significa "boa morte".

Por ortotanásia designa-se a suspensão dos meios medicamentosos ou artificiais de manutenção da vida de um paciente em coma irreversível. E, por distanásia, aponta-se o emprego de todos os meios terapêuticos possíveis, inclusive os extraordinários e experimentais, num paciente terminal. Enquanto com a ortotanásia se aceita o processo natural de morrer, com a distanásia, pela obstinação terapêutica, se provocam distorções. Num caso, permite-se ao paciente ir ao encontro da morte; no outro, a ele se impõe um tratamento insistente, desnecessário e prolongado, sem nenhuma certeza de sua eficácia. Com a eutanásia, adianta-se a morte, atendendo à vontade expressa e manifesta do paciente, no sentido de evitar sofrimentos que ele julga insuportáveis ou de encurtar uma existência que acredita penosa e sem sentido.

Na antiguidade greco-romana, reconhecia- se o direito de morrer; era o que permitia aos doentes desesperançados pôr fim à própria vida, contando por vezes com o auxílio de outrem. Com o cristianismo introduziu-se a noção de sacralidade da vida, passando-se a concebê-la como um dom de Deus a ser preservado; foi o que levou à extinção das práticas dos antigos.

Ora, tomar a vida como bem supremo implica não só proibir categoricamente a eutanásia, impedindo o paciente de pôr termo a sofrimentos insuportáveis, como também aderir à distanásia, impondo a ele sofrimentos ainda maiores causados pelos tratamentos fúteis e pela obstinação terapêutica. Considerar a vida o direito primeiro da pessoa humana implica, também, que não se permita que tomem parte da discussão acerca da eutanásia todos os que são por ela afetados (além do paciente, os familiares e amigos, os grupos e segmentos sociais). E seria possível ainda argumentar que, em nossa sociedade, o "valor sagrado da vida" não evitou que se aceitassem as guerras, a pena de morte e a legítima defesa, sem falar no extermínio dos animais.

É preciso ainda notar que, ao defender "a vida a qualquer preço", adota-se um modo de pensar dualista, opondo-se a vida à morte. Privilegia-se um dos termos da oposição em detrimento do outro, dispondo-se a tudo fazer pela vida contra a morte. Excluindo-se o seu contrário, converte- se então o direito de viver em dever.

Defensores da eutanásia, por sua vez, argumentam em favor do direito de morrer. [...] O direito de morrer se basearia antes de qualquer coisa no princípio de autonomia. Toda pessoa tem o direito de tomar decisões acerca da própria vida; é capaz de decidir o que ela quer fazer e o que quer que outrem lhe faça. Não cabe, pois, à lei vir tolher tal direito nem limitar a sua liberdade; ninguém sabe melhor do que ela o que lhe convém. Este mesmo argumento valeria para o aborto provocado e para o suicídio; constituiria um desrespeito ao princípio de autonomia penalizar criminalmente quem decidisse provocar um aborto ou tentasse o suicídio. Assim, toda pessoa gozaria, dentre os seus direitos, do privilégio de dispor de sua existência em quaisquer circunstâncias, desde que, por livre e espontânea vontade, desistisse de viver. E ainda mais nos casos de doença incurável, acrescida de dores insuportáveis e sofrimentos inúteis.

Lançando mão do pensamento de Nietzsche, não seria desmedido dizer que é a vida, ela mesma, que, vencida, se reduz à sobrevivência, quando não suporta a doença nem tolera a dor. Dessa óptica, apressar a morte de um paciente incurável e em terrível sofrimento, atendendo à sua vontade expressa e manifesta, não equivaleria a tirar-lhe a vida, mas a abreviar-lhe a sobrevivência. [...] no quadro do pensamento de Nietzsche importa antes de qualquer coisa recusar todo e qualquer dualismo.

Num mundo marcado pela crise de valores, amplia-se o debate entre os que advogam o caráter sagrado da existência humana e os que defendem os seus aspectos qualitativos. Enquanto uns julgam que a medicina tem de estar a serviço da vida, outros entendem que ela deve prezar antes de tudo a pessoa. Daí, o impasse teórico em que nos encontramos hoje. Ou advogamos o valor sagrado da existência humana e acabamos atrelados a posições dogmáticas, que encerram a discussão em vez de promovê-la, ou então defendemos a qualidade de vida e, embora talvez mais aparelhados para refletir sobre questões que se impõem hoje nos debates de Bioética, como a da eutanásia, corremos o risco de engrossar o discurso das empresas de saúde.

Na sociedade em que vivemos, o ser humano que está à morte é tido por um insucesso. Nesta sociedade que preconiza a produtividade e o lucro, que prega a eficácia a qualquer preço, que promove o espírito de competição e a lógica da exclusão, o moribundo é visto como um malogro. Na nossa sociedade, a "cultura da morte" manifesta-se antes de qualquer coisa no descaso pela vida. E não me refiro aqui aos que morrem no âmbito médico-hospitalar, mas aos milhares de indivíduos a quem se nega o direito de viver. Refiro-me à morte imposta a todos aqueles que se acham abaixo da linha de pobreza.

É notável, pois, a discrepância entre a idolatria da vida de que se beneficiam alguns e a cultura da morte a que se condenam tantos.

Mas por que não perseguir a utopia de que, numa outra sociedade, todo ser humano teria assegurado o seu direito a uma morte digna, porque veria antes respeitado o seu direito a uma vida digna? 



* Este artigo, publicado na revista Ciência & Vida – Filosofia Nº38, Ed. Escala, foi aqui editado, por questão de espaço e maior compreensão em favor do tema abordado.

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