quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

A CRISE DO RACIONALISMO OCIDENTAL (Parte II)

PARA ALÉM DAS FRONTEIRAS DA RAZÃO*


O físico austríaco Fritjof Capra é um a espécie de catalisador do pensamento científico, social e filosófico. Autor de dois grandes best-sellers, O Tao da Física e O Ponto de Mutação, Capra encontrou uma relação harmoniosa e, ao mesmo tempo esclarecedora, entre a Física Quântica e a Filosofia Oriental, e viu nisso algo que o ajudou a definir como uma nova visão da realidade, com múltiplas implicações para uma mudança científica e sociocultural. Assim, de uma série de encontros que teve com algumas das mentes mais influentes do século XX, entre as quais, Werner Heisenberg, Jiddu Krishnamurti, Alan Watts e Gregory Bateson, agrupou um extenso e interessantíssimo material, que resultou em outro livro, intitulado Sabedoria Incomum.

Neste segundo capítulo da série “A Crise do Racionalismo Ocidental”, transcrevo o que considerei de mais relevante nos três primeiros capítulos dessa obra que é uma coletânea de perspectivas multidisciplinares fascinantes, que tendem a apontar para novos caminhos em direção à apreensão da realidade à nossa volta, sob os auspícios de mentes brilhantes do século passado e de outras mentes de séculos bem mais distantes que este, que nos é recente, como Krishna, Lao Tsé e Buda.

O autor de “Sabedoria Incomum”, logo no seu Prefácio, diz: “Qualquer pesquisa levada a cabo nas fronteiras do conhecimento tem por característica o fato de não sabermos jamais aonde ela levará; no final, porém, se tudo correr bem em geral podemos discernir uma evolução de nossas idéias e de nosso entendimento”. Capra diz que passou quinze anos, entre as décadas de 1970 e 1980, perseguindo um único tema: a transformação fundamental da visão de mundo que ocorre na ciência e na sociedade, o desdobramento de uma nova visão da realidade e as implicações sociais dessa transformação cultural.

Esse seu interesse, diz ele, despertou quando, ainda estudante de física, aos dezenove anos de idade, leu Física e filosofia de Werner Heisenberg, físico alemão falecido em 1976, laureado com o Nobel de Física e um dos fundadores da Física Quântica. Heisenberg. Os cientistas do início do século XX começaram a explorar a estrutura dos átomos e a natureza dos fenômenos subatômicos, então se depararam com uma estranha e inesperada realidade, que estilhaçou os alicerces da sua visão de mundo e os forçou a pensar de maneira inteiramente nova. A conclusão que tiveram foi a de que o mundo material que então observavam já não se assemelhava a uma máquina, constituída de uma multidão de objetos distintos e, sim, como um todo indivisível – uma rede de relações que incluía o observador humano de modo essencial. Concluíram também que seus conceitos básicos, sua linguagem e todo o seu modo de pensar eram inadequados para a descrição dessa nova realidade. “A cisão cartesiana penetrou fundo na mente humana nos três séculos após Descartes, e levará muito tempo para ser substituída por uma atitude realmente diferente diante do problema da realidade”, afirmou Heisenberg.

É com Alan Watts, que Capra toma conhecimento do zen-budismo e, pouco depois, seu irmão Bernt Capra sugere a ele também a leitura do Bhagavad-Gita (que o próprio Capra declara ser “um dos textos espirituais mais belos e profundos da Índia”). Watts, filósofo britânico, falecido em 1973, também era escritor e estudante de religião comparada, e uma espécie de “intérprete” da Filosofia Oriental para o Ocidente. Tinha muita influência dentro das comunidades hippies e era considerado um herói da contracultura. Apesar de ter feito antes algumas leituras sobre a filosofia e a religião orientais, Capra admite que foi com Watts que veio a conhecer a sua essência.

Em seguida, Capra se aproxima do indiano de formação inglesa, Jiddu Krishnamurti, um pensador original, que rejeitava toda autoridade espiritual e todas as tradições religiosas. Krishnamurti se propusera a tarefa de usar a linguagem e o raciocínio para levar seus ouvintes para além do conteúdo linguístico e da razão, de forma impressionante. O propósito era fazer com que as pessoas envolvidas naquele processo de análise chegassem à nítida sensação de que os problemas existenciais só poderiam ser realmente sanados quando elas fossem capazes d ir além do simples pensamento, da linguagem e do tempo. O pensador indiano chamava isso de “freedom from the known”, ou seja, “libertar-se do conhecido”.

Esse encontro com Krishnamurti abalou o jovem Capra, que acabara de iniciar o que parecia ser uma promissora carreira científica, que, então, viveu um momento de dilema: “Deveria desistir da carreira científica nesse estágio inicial, ou deveria continuá-la, abandonando toda esperança de alcançar a auto-realização espiritual?”. Resolveu então perguntar ao próprio Krishnamurti: “Como posso ser um cientista e ainda assim seguir seu conselho para interromper o pensamento e libertar-me do conhecido?”. Segundo Capra, o pensador indiano respondeu sem pestanejar: “Primeiro você é um ser humano, e depois é um cientista!”. O que significava dizer que antes de tudo o jovem físico deveria se tornar “livre”, e que essa “liberdade” não pode ser ationgida pelo pensamento racional – ela só pode ser atingida pela “meditação” – a compreensão da totalidade da vida, onde cessam todas as formas de fragmentação. Apesar desse conselho, e paradoxalmente, Krishnamurti, ao final do encontro com Capra, não deixou de sentenciar em perfeito francês: “J’adore la science. C’est merveilleux”.

Capra descobrira assim o paralelismo que pode haver entre a física moderna e misticismo oriental. Ele diz que, através do zen-budismo, ficou conhecendo pela primeira vez o papel do paradoxo nas tradições místicas, que os mestres espirituais do Oriente recorrem, com grande habilidade, a enigmas paradoxais para fazer seus discípulos perceberem as limitações da lógica e do uso da razão – o zen se utiliza dos chamados “koans”, que não podem ser resolvidos pelo raciocínio e levam o estudante a interromper o processo do pensamento, tendo assim uma experiência não-verbal da realidade. Declara Capra: “Quando li pela primeira vez a respeito do método dos koans no treinamento zen, senti algo estranhamente familiar. Eu passara muitos anos estudando outro tipo de paradoxo que parecia desempenhar papel semelhante no treinamento dos físicos. Havia diferenças, é claro”. Essas reflexões a respeito desses paradoxos o levariam novamente a declarar, mais adiante: “Tempos depois, também vim a compreender porque os físicos quânticos e os místicos orientais depararam com problemas semelhantes e passaram por experiências semelhantes. Sempre que a natureza essencial das coisas é analisada pelo intelecto, ela parecerá absurda ou paradoxal. Isso foi sempre reconhecido pelos místicos, mas só muito recentemente tornou-se um problema para a ciência. Durante séculos, os fenômenos estudados pela ciência faziam parte do mundo cotidiano dos cientistas e, portanto, pertenciam ao domínio da sua experiência sensorial. Como as imagens e conceitos da linguagem que usavam provinham exatamente dessa experiência dos sentidos, eles eram suficientes e adequados para descrever os fenômenos naturais”.

Capra diz que os físicos nucleares proporcionaram aos demais cientistas os primeiros vislumbres da natureza essencial das coisas, passaram a lidar com experiências não- sensoriais da realidade, exatamente como já faziam os místicos orientais, e dessa forma tiveram de enfrentar os aspectos paradoxais dessas experiências. O próprio Capra fala de sua experiência “mística” que o levou a escrever “O Tao da Física”. Suas palavras são as seguintes:

“Eu estava na praia e observava o movimento das ondas, sentindo ao mesmo tempo o ritmo da respiração. Nesse momento, de súbito, apercebi-me intensamente do ambiente que me cercava: este se me afigurava como se participasse de uma gigantesca dança cósmica. Como físico, eu sabia que a areia, as rochas, a água e o ar a meu redor eram feitos de moléculas e átomos em vibração, que consistiam de partículas. Sabia também que a atmosfera da Terra era constantemente bombardeada por chuvas de ‘raios cósmicos’, partículas de alta energia que sofriam múltiplas colisões à medidad que penetrava na atmosfera. [...] Sentado na praia, senti que minhas experiências anteriores adquiriam vida. [...] ‘Vi’ os átomos dos elementos – bem como aqueles pertencentes ao meu próprio corpo – participarem dessa dança cósmica de energia. Senti o seu ritmo e ‘ouvi’ o seu som. Nesse momento compreendi que se tratava da Dança de Xiva, o deus dos dançarinos, adorado pelos hindus”.

Algum tempo depois dessa experiência incomum, Fritjof Capra, ouviu do estudioso e sábio indiano Phiroz Mehta a seguinte observação: “Pense em seu próprio corpo; quando você está com saúde, não está ciente de suas miríades de partes. Você se percebe como um organismo único. Somente quando algo está errado é que você se torna ciente de suas pálpebras ou de suas glândulas. De modo semelhante, o estado de experimentar a realidade como um todo unificado é o estado saudável para os místicos. A divisão em objetos distintos deve-se, para eles, a uma perturbação mental”.

Para encerrar este capítulo, transcreverei as palavras do físico Geoffrey Chew: “A violenta reação aos últimos avanços da física moderna só pode ser compreendida se percebermos que os alicerces da física começaram a se deslocar e que esse movimento provocou a sensação de que a ciência não mais sabia onde pisava”.

*Artigo baseado nos três primeiros capítulos de "Sabedoria Incomum", de Fritjof Capra, pela Editora Cultrix.

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