terça-feira, 3 de maio de 2011

BARBÁRIE VERSUS CIVILIZAÇÃO

DEMASIADO HUMANO?*

Ao longo do tempo, os conflitos entre povos e nações mudaram seus motivos, porém mantiveram seu traço de absurdo. Se somos seres dotados de razão e interessados em encontrar a felicidade, por que, então, vivemos em guerra?
Por Jaya Hari Das**

Após uma década de século 21, a humanidade ainda não vislumbra a possibilidade de ver fundado um pacto social que promova a justiça social como consequência imediata e a felicidade como consequência última. Por que, ainda hoje, pomos em risco nossas vidas, a vida de muitos, a vida de todos, produzindo a guerra? Por que o animal racional é irresponsável para com sua própria existência e intolerante para com seu semelhante, se a razão (e não a loucura) nos aconselha caminhos de diplomacia e de compreensão mútua, e deveria servir de fundamento para nossas relações?

Neste instante, há um conflito, grande ou pequeno, mas certamente sério o suficiente para nos pôr em alerta contra nós mesmos, em algum lugar do mundo. Nunca houve um único momento de verdadeira paz, em todos os lugares, ao mesmo tempo. Se a racionalidade ainda não foi capaz de instituir um contrato social baseado no respeito pela alteridade de indivíduos, povos e nações, e se o sentido de responsabilidade no homem, até o presente momento, não foi suficientemente rigoroso em firmar as bases de uma justiça social abrangente, então, tampouco, ou dificilmente, o ideal de felicidade poderá ser alcançado aqui na Terra, a despeito dos avanços científicos, da melhoria na qualidade de vida, dos tratados filosóficos, das exortações religiosas e dos esforços dos homens de boa vontade que ainda existam por aí.

Seremos nós, aqui, também forçados a perguntar, como o fez o Diabo de abernard shaw em Homem e Super-homem: uma comédia e uma filosofia, “Para que serve o conhecimento?” – isto é, para que serve nossa racionalidade? Será mesmo o homem, como diz o debatedor de Don Juan, pouco criativo na arte do viver e superior à natureza na arte de matar e fazer sofrer seu semelhante? Sejam quais forem as respostas para essas perguntas, numa coisa devemos concordar com Bernard Shaw:
“A razão escraviza todas as mentes que não são suficientemente fortes para a dominarem”. Será que o historiador Will Durant também tem razão ao dizer: “A ciência nos ensina a curar e matar; reduz a taxa de mortalidade no varejo e depois nos mata por atacado na guerra”?


Questão da paz
A existência e o sentido da vida sempre foram fontes de inspiração e de preocupação para a Filosofia. A racionalidade, privilégio do ser humano, sempre foi a via e o fundamento das discussões e proposições feitas ao longo da história da humanidade. A questão da paz (ou da guerra) tem a ver diretamente não somente com nossa compreensão de ética, justiça e racionalidade, como também com a aplicação destas em nossas vidas. Por essa razão, apresenta-se a nós a necessidade de averiguar, a partir dos filósofos que trataram cada uma delas à sua maneira, como a racionalidade pode promover a justiça social e em que medida poderá essa justiça nos conduzir realmente à felicidade.

Desde os tempos mais remotos, o homem vem tentando viver em bando, ou em sociedade, buscando assim sua proteção e seu bem-estar. Nessa trajetória, ele impôs regras a si mesmo, a fim de manter um convívio pacífico com seus semelhantes e tentar preservar sua vida e seus bens materiais e afetivos. No entanto, muitas foram (e ainda são) as dificuldades encontradas na realização de seu intento e, infelizmente, as ameaças a seu afã existencial, ao que parece, encontram- se nele mesmo. Entramos no século 21 incertos quanto à nossa capacidade de fazer desaparecer do nosso mundo a máxima que paira sobre a humanidade: bellum omnium contra omnes.

Em sua obra Leviatã, Thomas Hobbes defende a ideia de que no estado natural os homens são egoístas e que sem a existência da sociedade civil há necessariamente competição por riqueza, segurança e glória. Entretanto, apesar de teoricamente termos deixado o estado natural para viver no estado civil, na prática, a luta em favor dos interesses pessoais continua e, portanto, nosso teórico contrato social está rompido. A afirmação de Hobbes Homo homini lupus parece verossímil quando despimos de um extremo a outro a sociedade – da crua realidade das favelas e comunidades carentes às mansões e palácios da high society. O empirista britânico nos faz lembrar que as abelhas e as formigas são criaturas que vivem socialmente bem (Aristóteles as considera considerava criaturas políticas) e tenta explicar porque não conseguimos fazer o mesmo.

Ora, não precisamos ir tão longe para encontrar as razões de tal impossibilidade. A árdua tarefa de conviver implica renúncia, tolerância e determinação, que em si mesmas nada significam enquanto não estiverem imbricadas em uma racionalidade que promova homem éticos e governo justos. Porém, essa ética e essa justiça social precisam ser implantadas no mundo real e não apenas em tratados sociais, políticos e filosóficos. Eis que uma coisa nos inquieta: conviver será tão difícil assim?

Justiça e bem comum
Em A República, Platão (427-347 a.C.) nos apresenta uma cidade perfeita e autêntica, na qual a educação formaria o homem moral, sob um governo verdadeiramente fundado sobre o valor supremo da justiça e do bem. A justiça nada mais seria senão a harmonia que se estabelece entre três virtudes: temperança, coragem e sabedoria, quando cada cidadão e cada classe social desempenham as funções que lhe são próprias, da melhor forma, e fazem aquilo que por natureza e por lei são convocados a fazer. Tal cidade realizar- seia primeiramente no interior de cada homem e, somente depois, fora dele, em coletividade. Nesse sentido, a racionalidade deveria propiciar a elevação do homem natural, a fim de que ele, ciente e aparelhado daquelas virtudes, pudesse instaurar na História a cidade ideal.


Vista do ponto em que estamos agora, a concepção platônica de que o conhecimento e a educação controlariam os instintos, a ganância e a violência do homem e os valores instituídos na civilização seriam uma espécie de antídoto contra todo mal que uns poderiam causar aos outros, dentro das sociedades, não passa de um ideal utópico. Fácil é perceber que, uma vez que ainda não nos foi possível tal proeza, a despeito da razão habitar em nós conspicuamente, longe de nós ainda estão aquelas virtudes. No entanto, o próprio Platão nos advertiu: “A justiça seria uma questão simples, se os homens fossem simples”.

No diálogo Menão, Platão nos apresenta o questionamento sobre se a virtude pode ser ensinada, se pode ser adquirida com exercícios ou se a recebemos por natureza. Ao que Sócrates teria rebatido dizendo que “antes deve-se procurar saber o que é a virtude” e Menão teria então replicado: “Como seria possível buscar o que não se conhece, pois encontrando-a corremos o risco de não reconhecê-la”. Para desembaraçar-se dessa problemática, Platão recorre à sua doutrina da reminiscência, que reza: “O conhecimento em geral, das coisas universais e necessárias, é possível mesmo quando se busca o que ainda não se sabe, pois em nós há opiniões que podem ser verdadeiras, e estas nos conduzem a conhecimentos bem fundamentados”. Em outras palavras, haveremos de saber o que é a virtude, o que é o bem e o que é a justiça assim que se apresentem diante de nós como realidades e não como ilustres temas do exercício fugaz de nossa intelectualidade.

Aristóteles (384–322 a. C.), por sua vez, mesmo tendo sido discípulo de Platão, afastou-se de tal teoria, mantendo-se fiel ao modo filosófico de perguntar pelo que é. O estagirita nos vem dizer que “não investigamos para saber o que é a virtude, mas a fim de nos tornarmos bons”. Para ele, a virtude precisa se tornar um hábito, por isso deve ser praticada constantemente. Tanto em Ética a Nicômacos, quanto em Ética a Eudemo, o filósofo nos apresenta o problema defendendo que o bem é próprio a cada coisa em particular (a sua essência), de forma que o homem não deve desejar ser o que ele não é e sim contentar-se com o ser que lhe é próprio, que corresponde ao bem dentro do grau que ele ocupa na escala ontológica. Diz ele: “O homem que deseja viver bem deve viver segundo a razão”, e que “O bem supremo realizado pelo homem (a felicidade) consiste em aperfeiçoar- se enquanto homem, na atividade que o diferencia de todas as outras criaturas – a racionalidade”. Lição aprendida? Evidentemente, não!

Alasdair Macintyre , em sua obra Justiça de quem? Qual Racionalidade?, argumenta que as concepções rivais e totalmente incompatíveis da justiça são o resultado de formas rivais e totalmente incompatíveis da racionalidade prática. Diz ele: “Habitamos uma cultura na qual a inabilidade de se chegar a conclusões comuns e racionalmente justificáveis sobre a natureza da justiça e da racionalidade prática coexiste com a utilização, por parte de grupos sociais em oposição, de um conjunto de convicções rivais e conflitantes não embasadas na justificação racional”. Donde desprende-se que a racionalidade (tão glorificada e, ao mesmo tempo, tão questionada por nós até aqui) sobrecarrega-se, por assim dizer, de diferentes concepções, tornando os critérios de valoração moral diversos, aqui e ali, entre grupos de indivíduos ou sociedades. Destarte, a ética e, mais precisamente, a justiça terão dificuldades de ser instaraudas universalmente, dentro de padrões de justificação racional díspares.

Marilena Chaui nos diz, no capítulo 5, intitulado A Filosofia Moral, de seu Convite à Filosofia, que “toda cultura institui uma moral, isto é, valores concernentes ao bem e ao mal, ao permitido e ao proibido, e a uma conduta correta, válidos para todos os seus membros. Culturas e sociedades fortemente hierarquizadas e com diferenças de castas ou de classes muito profundas podem até mesmo possuir várias morais, cada uma delas referida aos valores de uma casta ou de uma classe social”. Vemos, então, que há de se ter dificuldade na elaboração e efetivação de uma realidade boa e justa mesmo numa estrutura particular (numa única sociedade, por exemplo), que dizer então da possibilidade de universalizar essa realidade?! Neste ponto, cabe lembrar a conclusão a que chegou Montaigne , ao se deparar com três caciques tupinambás na corte do rei Carlos IX, da França. Depois de comparar aqueles selvagens com os civilizados europeus de então, o pensador concluiu que os índios eram superiores, devido à sua coerência com a própria cultura, à dignidade e ao senso de justiça, enquanto os europeus promoviam banhos de sangue em suas conquistas na América e em suas guerras ditas religiosas.

Recorrendo a Nietzsche
Diante da dificuldade de solucionar esta questão causticante a que nos lançamos, proponho uma mudança de estratégia – por que não procuramos respostas na desconstrução moral nietzscheana, por exemplo? Se estamos, de fato, de volta ao começo de nossas indagações, que tal recomeçar com uma pergunta do próprio Nietzsche? “Por que tememos e odiamos nós um possível retorno à barbárie? Por que ela faria os homens mais infelizes do que são?”. Dito assim, a marteladas, quem dentre nós não se convencerá em definitivo que da barbárie à pós-barbárie os homens parecem os mesmos? Felizes ou infelizes! Mas o homem-martelo ousa um pouco mais e diz: “Os bárbaros de todas as épocas foram mais felizes – não nos iludamos! Mas nosso instinto de conhecimento é muito desenvolvido para que possamos ainda apreciar a felicidade sem conhecimento ou a felicidade de uma ilusão sólida e vigorosa [...]. A paixão do conhecimento talvez leve mesmo a humanidade a perecer!” Gostaria de lembrar que a palavra “Aurora” lembra “o despertar”, quiçá “o abrir-de-olhos” de uma humanidade que, a despeito de sua longa jornada pela História, põe sua esperança num mundo melhor, ora em sua fé religiosa, ora em sua faculdade racional – os únicos pastores capazes de apascentar suas ovelhas num "pasto social".

Nietzsche destrói toda e qualquer possibilidade de o homem ter direito à elaboração de uma ética que tenha a pretensão de ser “a verdade”. Ele denuncia que tudo o que os arquitetos filosóficos edificaram está em ruínas, isto é, que todo o esforço de Sócrates, Platão e Kant mais precisamente na construção do perene edifício da verdade, agora jaz em escombros. Para o filósofo-desconstrutor, o homem, na verdade, cria a partir de uma imagem que projeta de si mesmo como centro do mundo, conceitos metafóricos que, esquecidos com o tempo, passam a valer como “verdades”. A questão da ética passa, inexoravelmente, pela questão da verdade, pois a ética se propõe como a moral universal e a verdade, como o axioma universal, sendo aquela o espelhamento desta. Nietzsche, como o questionador par excellence da moral e da verdade como fundamentos da existência humana, ao mesmo tempo em que defende a valorização dos puros instintos e a supremacia destes sobre a manobras axiológicas, perpetradas desde Sócrates até Kant, vai dizer no parágrafo 1 de Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral que “Qualquer moral, opostamente ao laisser aller, é uma espécie de tirania contra a ‘natureza’ e também contra a ‘razão’”.

O homem-dinamite acredita saber a razão de todo esse descaminho: “É porque nós, desde milênios, temos olhado para o mundo com pretensões morais, estéticas, religiosas, com cega inclinação, paixão e medo, e porque nos temos relegado nos maus hábitos do pensamento ilógico, que esse mundo pouco a pouco veio a ser tão maravilhosamente colorido, apavorante, profundo de significação, cheio de alma; ele adquiriu cores – mas somos nós os coloristas: o intelecto humano fez aparecer o fenômeno e transpôs para as coisas suas concepções fundamentais errôneas”. Em suma, o que o filósofo da desconstrução nos quer dizer (e realmente nos diz) é que “temos de aprender a desaprender, para que, enfim, talvez, possamos mudar de sentir”.

Já na modernidade, sentenciava: “Em proporção com a maneira de viver de milênios inteiros da humanidade, vivemos nós, homens de agora, em um tempo muito não-ético: a potência do costume está assombrosamente enfraquecida e o sentimento da eticidade anda tão refinado e tão transportado para as alturas que pode, do mesmo modo, ser designado como volatilizado”. Na tentativa de estabelecer a “verdade” numa esfera transcendente à humanidade, a racionalidade falha porque, ao mesmo tempo, põe essa deusa (Veritas) no campo do humano, demasiado humano, fazendo dela um joguete nas mãos de homens que nada mais querem senão encontrar uma justificação racional para suas convicções, crenças e valores.

A Filosofia será sempre uma inquietação que problematiza, não para dar respostas conclusivas e agradáveis, mas para ampliar os horizontes de uma humanidade mergulhada no racionalismo. Platão e Aristóteles plantaram seus ensinamentos no seio da humanidade, apontaram caminhos para dúvidas e conflitos da própria racionalidade; Nietzsche abalou, “a marteladas”, os alicerces das frágeis convicções e dos valores empedernidos, demonstrando com sua “filosofia da desconstrução” que não são os instintos humanos os vilões de nossa infelicidade. O impasse a que a questão aqui levantada nos faz recorrer a uma última indagação – não se sabe ao certo se ela foi feita anteriormente por um filósofo ou profeta: "Todos os seres até hoje criaram alguma coisa superior a si mesmos; e vós quereis ser o refluxo deste grande fluxo e até mesmo retroceder às bestas, em vez de superar o homem?".

* Artigo publicado na Revista Conhecimento Prático Filosofia Nº29.
** Filósofo, escritor, poeta, músico, compositor, sistematizador da Terapia Hari* e diretor/difusor do MOFICUSHINTH*

ESTA PUBLICAÇÃO TEM COMO PATROCINADORES: DELLA FRUTA SORVETES E MADEIREIRA CLASSE A, PARCEIROS DO MOFICUSHINTH*

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