quinta-feira, 14 de junho de 2012

KANT: IMPERATIVO E CATEGÓRICO

IMMANUEL KANT, UM DIVISOR DE ÁGUAS



A Filosofia tem pelo menos dois pensadores reconhecidos como "divisores de água": Sócrates e Kant. Enquanto o primeiro mudou o olhar empreendido pelos pensadores anteriores (por isso chamados de pré-socráticos), Kant traçou os limites do conhecimento humano, no período em que a crença na "Razão" propalava a ideia de que o homem tudo podia conhecer
Por: Jaya Hari Das*

Dizem que as crianças, assim que começam a falar, fazem perguntas "filosóficas", do tipo que iniciam sempre com "como" ou "por quE". Assim sendo, não seria descabida a comparação da "infância" com o período do nascimento da Filosofia entre os gregos, uma vez que aqueles antigos pensadores começaram também a indagar sobre o Universo perguntando-se "Como o Cosmos foi formado?" ou "Por que os seres nascem e morrem?", por exemplo. Antes disso, houve todo um período mitológico, no qual narrativas simplórias preenchiam a curiosidade e o imaginário das pessoas, tal qual os vários contos de fada, construídos em um mundo de fantasias, são contados até hoje às crianças, visando simplesmente aplacar seus medos ou adverti-las de certos perigos.

A humanidade pode parecer a mesma para alguns; os filhos podem parecer sempre pequenos para seus pais, mas, na verdade, algo muda inexoravelmente. Com o passar do tempo, todos começam a fazer perguntas diferentes. E isso é um bom sinal de que eles estão crescendo. As perguntas são mais incisivas e as respostas, portanto, precisam ser mais conclusivas. Sócrates, por exemplo, mudou, ainda na Antiga Grécia, o rumo das indagações de seus compatriotas, inaugurando com isso um novo momento na história da filosofia. Mas ele não seria o único, pois, apesar de, durante vários séculos, os homens deverem a ele tudo o que se construiu em termos de conhecimento do próprio homem, o tempo, senhor de todas as transformações, não deixaria tudo tão indelével assim. Bem que Platão e Aristóteles tentaram, e até foram bem-sucedidos por muitos e muitos anos!

O obscurantismo da Idade Média cobriu a humanidade sob nuvens tão escuras que os homens mal puderam se dar conta do trabalho lento e silencioso que o tempo andava fazendo em suas mentes juvenis. Como todo a adolescente, o homem medieval estava para eclodir não com espinhas, mas com espadas, que fariam estourar revoltas e revoluções por toda a Europa, em breve. Em breve, também, homens como Francis Bacon, Voltaire e Rousseau surgiriam, trazendo luzes, para afastar de uma vez por todas as trevas medievais. E a Filosofia, que ainda não havia despertado completamente do "sono dogmático" de uma obscura noite de dez longos séculos que lhe fora imposta, vai despertar de vez sob os auspícios de um filósofo que sabia muito bem viver uma vida sob as simples badaladas do seu relógio. Esse filósofo chamava-se Immanuel Kant.

Nascido em Königsberg (atual Kaliningrado), na antiga Prússia, em 1724, Emanuel Kant (que depois mudaria seu nome de batismo para Immanuel), foi o quarto de nove filhos do casal Johann Georg Kant, um artesão, e Anna Regina Reuter, uma religiosa pietista praticante. A mãe foi tão marcante na vida do filósofo que ele, como uma espécie de reação a tanto rigor religioso, manteve-se afastado da Igreja assim que cresceu, apesar de ter o ar inconfundível de um puritano alemão. Estudou no Collegium Fredericianum até entrar para a Universidade de Königsberg, aos 16 anos. Foi lá que se deparou com a filosofia de Leibniz e de Isaac Newton duas de suas grandes influências, mais tarde trocaria correspondências com Voltaire (outra grande influência). Com a morte de seu pai, seis anos após ingressar na universidade, precisou lecionar como tutor, o que o fez interromper seus estudos, mas não evitou que os concluísse com sucesso. Sua dissertação de mestrado, em 1755, intitulou-se "Novo Esclarecimento Acerca dos Primeiros Princípios Metafísicos ou simplesmente Nova Dilucidatio (título em latim). Em seguida tornou-se Privatdozent, espécie de professor particular sem remuneração pela universidade e, sim, pelos alunos que conseguisse, tendo sido bem-sucedido, porquanto muitos dos seus cursos se repetiram várias vezes, durante anos, em vista da demanda de alunos. Somente em 1770 é nomeado professor ordinário de lógica e metafísica. Só deixou sua cátedra por motivo de debilidade e velhice, sete anos antes de morrer, em 1804.

No mesmo ano da publicação de seu Nova Dilucidatio, no dia 1º de novembro, ocorrera também, um terrível a terremoto em Lisboa. Fato marcante em sua vida e na de muitos outros pensadores iluministas. Voltaire, por exemplo, escrevera no ano seguinte um poema de lamento pela condição humana (uma de suas críticas a "o melhor dos mundos possíveis" de Leibniz) e Kant, por sua vez, escrevera três pequenos trabalhos, que juntos foram publicados sob o título de Escritos Sobre o Terremoto de Lisboa (donde teceria o conceito de sublime, desenvolvido, anos depois, em sua Crítica do Juízo. Mais tarde, em 1762, após ler Emílio e O Contrato Social, rende-se a mais uma grande influência dessa vez, trata-se do genebrino Jean-Jacques Rousseau. "Quando Kant leu Emílio, não deu seu passeio matinal sob as tílias, a fim de terminar logo o livro. Foi uma acontecimento, em sua vida, encontrar ali outro homem que tateava para sair da escuridão do ateísmo e que afirmava audaciosamente a prioridade do sentimento em relação à razão teórica naqueles casos supra-sensíveis" (DURANT, 2000). Essas influências culminariam com a David Hume que, segundo o próprio Kant, foi quem o despertou do "sono dogmático". Curiosamente, esses mesmos homens que lhe serviram de influência seriam os que, mais tarde, ele procuraria refutar - "[...] a diferença radical, fundamental, que existe entre Kant e seus predecessores é que os predecessores de Kant, quando falam do conhecimento, falam do conhecimento que vão ter, do conhecimento que se vai construir, [...] da ciência que está em constituição, em germe [...], quando Kant fala do conhecimento, fala de uma ciência físico-matemática já estabelecida [...], refere-se ao conhecimento científico-matemático da Natureza" (MORENTE, 1979).

A Europa iluminista tem seus fundamentos bem definidos na Europa renascentista, do retorno à Antiguidade Clássica, da valorização do homem, em que o jargão socrático "Conhece-te a ti mesmo" é retomado. Novamente Sócrates, e não por acaso, uma vez que, logo de início, foi estabelecida aqui uma relação entre ele e Kant, ao citá-los como dois grandes "divisores de água" na Filosofia. O Iluminismo, ou Era das Luzes, como também ficou conhecido, desabrochou em uma Europa marcada por grandes transformações sociopolíticas, na qual a França fora uma das protagonistas. Os pensadores iluministas franceses se autodenominavam "les philosophes", muitos deles burgueses e boêmios, mas todos, sem exceção, cidadãos da "república das letras" - espírito que se generalizou em clubes, cafés e salões literários. "Les philosophes tornam-se sinônimo de subversão e pornografia por defender e praticar a liberdade de pensamento, de que resulta uma nova concepção do mundo e do homem" (ABRÃO, 2004). Dentre eles estavam Voltaire, Diderot, a d'Alembert, Montesquieu, Rousseau e a Condorcet.

O Iluminismo alemão não precisou de uma "revolução" como a "francesa", no entanto, a futura Alemanha, que nada mais era, naquela época, que um aglomerado de Estados, que via sua língua sendo preterida ao latim ou ao francês, consequentemente não ficou incólume a uma revisão geral de valores, ambiente ideal para uma "crítica radical", até mesmo da própria razão, que recebeu o nome de Aufklärung. É nesse contexto que Kant, então, propõe que a razão "estabeleça um tribunal que, ao mesmo tempo que assegure suas legítimas aspirações, rechace todas as que sejam infundadas, e não o fazendo mediante arbitrariedades, mas segundo suas leis imutáveis".

O idealismo transcendental kantiano, como ficou conhecida a filosofia do pensador de Königsberg, não é de fácil compreensão, mas pode ser estudado em suas duas grandes obras: Crítica da Razão Pura (1781) e Crítica da Razão Prática (1788). Conta-se que Herz, depois de receber o manuscrito da Crítica das mãos do próprio Kant, o teria devolvido, sem lê-lo por completo, dizendo temer "ficar louco" se o fizesse "Kant é a última pessoa do mundo que devemos ler sobre Kant" (DURANT, 2000). Essa dificuldade em lê-lo se deve a que, ao elaborar sua estratégia de ataque aos critérios do conhecimento, o filósofo, antevendo os ataques que também receberia de seus oponentes, decide, perspicazmente, que deveria "falar outra língua", tecer suas ideias em uma linguagem própria, de difícil compreensão vulgar. Assim, para combatê-lo, é necessário subir às suas alturas, onde seu contestador terá de escolher entre "respirar ou lutar", "Aproximemo-nos dele por desvios e com cautela, começando a uma distância segura e respeitosa; [...] e depois avancemos tateando em direção àquele sutil centro em que o mais difícil dos filósofos guarda o seu segredo e o seu tesouro".

Em 1784, em um pequeno artigo, intitulado Beantwortung der frage: Was ist Aufklärung? (Resposta à pergunta: O que é o esclarecimento?), Kant diz: "Esclarecimento é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento". Como se pode ver, conquistar a maioridade é uma questão que está nas mãos do próprio indivíduo, na medida em que se assume como "livre, autônomo e racional".

Se o Iluminismo buscou o esclarecimento do ser humano, a antropologia kantiana caiu, por assim dizer, como uma luva nesse movimento sociopolítico, artístico-cultural, da burguesia europeia. A indagação "O que é o homem?", em Kant, encontraria resposta a partir de três outras questões: "O que se pode saber?", "O que se deve fazer?" e "O que é lícito que se espere?". Kant considerava "escandaloso" que em mais de dois mil anos de pensamento filosófico nenhum pensador tenha sido capaz de "realmente" provar se há ou não "um mundo lá fora", externo a nós. Destarte, lançou- -se a dar uma solução ao "impasse" estabelecido entre racionalistas, como Descartes, e ceticistas, como Hume. Na filosofia racionalista de Leibniz, reaparecera a teoria dos "dois mundos", enquanto isso, os empiristas se empenhavam em criticar as pretensões da metafísica. Para dar conta desses mundos, aparentemente tão díspares, e dessas filosofias, presumivelmente irreconciliáveis, o sábio de Königsberg vai distinguir 3 modos de saber: a sensibilidade (Sinnlichkeit), o entendimento discursivo (Verstand) e a razão (Vernunft ). A partir daí é que ele destrincha, em sua Crítica da Razão Pura, as possibilidades do conhecimento e o fundamento da sua validade. "O espaço e o tempo separam- -nos da realidade das coisas em si. A sensibilidade limita-se a apresentar fenômenos ao entendimento, coisas que são 'deformadas' ou elaboradas por essa sensibilidade" (MARÍAS, 1978). Em outras palavras: tudo o que chegamos a conhecer não passa de uma "construção" forjada por nossas sensações, uma espécie de "produto artificial", gerado por nossa inexorável submissão ao espaço e ao tempo, portanto, a posteriori; enquanto, o que está para além de nossa percepção sensorial (ou a priori) nos é inacessível. Eis o grande golpe que o filósofo de Königsberg desferiu contra a metafísica que se sustentara até então e à qual dedicaram seu valoroso tempo pensadores desde a Parmênides até Leibniz. Daí a razão de admoestar os pretendentes a metafísicos, dizendo: "É incontornavelmente necessário pôr de lado provisoriamente seu trabalho, considerar tudo o que aconteceu até agora como não acontecido e antes de todas as coisas formular primeiramente a pergunta: se algo como a metafísica é simplesmente possível?".

Porém, se a metafísica clássica fora posta em "seu devido lugar" por Kant, a própria razão também o foi, porquanto foi dito a ela o que pode e o que não pode vir a conhecer. Isso estabelecido, segue, então, o filósofo para a parte prática no campo do conhecimento e escreve a sua Crítica da Razão Prática. Dali emana toda a "ética kantiana", a partir da qual lhe vem o "imperativo categórico", "Age de tal modo que trates a humanidade tanto na tua pessoa como na pessoa de todo outro sempre e ao mesmo tempo como um fim e jamais simplesmente como um meio [...]". Kant resgata a antiga tradição socrática quando postula uma máxima que não deixa dúvidas de que o indivíduo "esclarecido" é o mais "apto" a exercer a virtude e praticar o bem. É, então, sob essa nova égide que a Filosofia passará a desenvolver sua teoria do conhecimento, sabendo bem até que ponto a razão humana é capaz de penetrar em certos domínios e empreender ali sua atividade por excelência: conhecer. Também é a partir daí que o homem deverá compreender "o dever", não como obrigação, mas no sentido de "integridade", assumindo-se definitivamente como um ser racional. Essa nova noção de "dever" consiste na passagem do alienum júri (quando o indivíduo age coagido por leis exteriores ou por vontade de outrem) para o suis júri (quando o indivíduo age por uma espécie de vontade ou determinação própria, interior). O conceito de autonomia, em Kant, tem sua base em Rousseau, ele apenas a transferiu do âmbito político para o da moral.

Sendo, como já foi dito, um "divisor de águas" na Filosofia, Kant conquistou adeptos e admiradores, e também críticos ferrenhos. Friedrich W. Nietzsche, por exemplo, provavelmente tendo visto nele algo de muito similar a Sócrates (eis que surge outra vez aquela "ligação"!), tratou de apontar seu "idealismo romântico" como mais uma tentativa de negar os mais viris instintos do homem, impondo-lhe uma moralidade "de fora para dentro", capciosamente travestida de "imperativa", ou seja, inegável e necessária ao agir racional, em direção ao bem que ele deve sempre almejar. Embora tenha declarado que Sócrates fora o instaurador da metafísica no mundo, enquanto Kant é reconhecido como o destruidor dela, Nietzsche dirá que "esse chinês de Königsberg" foi, como todos os outros filósofos antes dele, seduzido pela "santa supremacia da moral" e, assim como Lutero dera sobrevida ao cristianismo, em vez de enterrá-lo, Kant fizera o mesmo com a metafísica, como podemos ver nesse trecho do prefácio de Aurora: "Kant era, justamente, com um tal propósito delirante, o bom filho do seu século, que mais que qualquer outro pode ser denominado de o século do delírio [...]. Também ele foi mordido pela tarântula moral Rousseau, também ele tinha no fundo da alma o pensamento do fanatismo moral [...]. Pode-se talvez [...] lembrar-se de algo aparentado a Lutero, naquele outro grande pessimista [...]". Até mesmo Arthur Schopenhauer, tão influenciado por Kant, ao perceber que sua segunda Crítica resgatava ideias religiosas, como Deus, liberdade e imortalidade (aparentemente destruídas na primeira), atirou: "A virtude de Kant, que a princípio se voltava para a felicidade, perde sua independência mais tarde e estende sua mão pedindo uma gorjeta".

"Kant era, justamente, com um tal propósito delirante, o bom filho
do seu século, que mais que qualquer outro pode ser denominado
de o século do delírio [...]. Também ele foi mordido pela tarântula
moral Rousseau, também ele tinha no fundo da alma o pensamento
do fanatismo moral [...]"

A filosofia kantiana, embora reconhecidamente elevada, complexa e até incompreensível, não se mantém sempre nas alturas ela, em vários momentos, desce à instância dos pobres mortais, quando, apesar de mantidas as características do seu autor, trata questões como a educação, a justiça e a teologia. Em sua obra Sobre a Pedagogia (conjunto de notas retiradas de suas preleções no curso de Pedagogia), Kant vai dizer que o fim último da educação é a liberdade "Deve-se começar a educar a criança pela lei que está dentro dela", propõe. O livro Emílio, de Rousseau, o impressionou de tal forma que Kant, ao dividir seu projeto pedagógico em duas partes a educação física e a educação moral, pautou a primeira em tudo o que lera na obra do pensador francês. Em Kant, a educação deve ter como objetivos a formação do caráter e a conscientização dos deveres do indivíduo para consigo mesmo. Disciplina, instrução, formação e cultura estão na base estrutural da pedagogia kantiana. Prudência e moralidade são as duas características fundamentais daquele que recebeu a devida educação, de forma que saiba e possa viver em sociedade (uma sociedade no estrito sentido do idealismo kantiano, é claro!) "Reformando-se o homem, reforma- se também a sociedade, e eis que surge o perfeito cidadão". Ao que parece, a concepção kantiana de "homem" destoa daquela defendida por Rousseau, do "bom selvagem", uma vez que o francês acusava a sociedade (com seus agressivos processos civilizatórios) pela deturpação do "homem natural" e o alemão primava pela formação cultural do ser humano para seu pleno desenvolvimento como cidadão "A Educação é uma arte, cuja prática necessita ser aperfeiçoada por várias gerações precedentes. Cada geração, de posse dos conhecimentos das gerações precedentes, está mais bem aparelhada para exercer uma educação que desenvolva todas as disposições naturais na justa proporção de conformidade com a finalidade daquelas e, assim, que caminha toda a espécie humana seu destino". Kant pensava no homem, não como "um ex-bom selvagem", mas como um "futuro melhor ser humano".

Embora muitas pessoas tenham a tendência a relacionar moralidade com religião, acreditando erroneamente que sem a religião os valores morais se perderiam, a ética kantiana passa longe de qualquer concepção ou tendência religiosa, da mesma forma que, em seu projeto pedagógico (do qual acabamos de tratar), uma educação ou formação religiosa é incogitável. Nem tanto porque o Iluminismo tenha sido uma proposta de domínio do pensamento racional sobre o teológico, mas simplesmente porque Deus, alma, reencarnação e imortalidade estão para Kant naquele patamar metafísico, no qual todas as lucubrações não passam de especulações mentais vazias de sentido racional, uma vez que, como o próprio Kant vai dizer, nossa razão jamais terá acesso a eles. Logo no Prefácio da 1ª edição (1793) de sua obra A Religião nos Limites da Simples Razão, lemos: "A moral que é baseada no conceito do homem, enquanto ser livre que por isso mesmo se obriga, por sua razão, a leis incondicionais, não tem necessidade nem da ideia de um ser diferente, superior a ele para conhecer seu dever, nem de outro móvel a não ser a lei pela qual o observa", donde percebe-se claramente como o filósofo desvincula Deus e a Religião em geral da questão moral do homem.

"O nosso filósofo [...] sentiu, à medida que envelhecia, uma grande
vontade de preservar para ele e o mundo pelo menos os pontos
essenciais da fé tão profundamente inculcada nele por sua mãe" (DURANT, 2000)

Trazendo de volta, outra vez, aquele link proposto desde o início entre Kant e Sócrates, não seria descabido dizer que a postura ética do filósofo ateniense diante da sentença que lhe foi proferida, com sua recusa em fugir de Atenas, como sugerido por seus amigos e discípulos, para livrar-se da morte por envenenamento, é sem dúvida a postura moral defendida por Kant.

Embora tendo sido criado por uma mãe extremamente religiosa e sob seus rigores devocionais, o pequeno Immanuel cresceu avesso à Igreja e a qualquer credo religioso. No entanto, segundo alguns autores, seu fervor religioso apenas estava envolto e escondido dentro de um coração racional "O nosso filósofo [...] sentiu, à medida que envelhecia, uma grande vontade de preservar para ele e o mundo pelo menos os pontos essenciais da fé tão profundamente inculcada nele por sua mãe" (DURANT, 2000). Não devemos esquecer, no entanto, que as questões de fé, como Deus e a alma imortal, por exemplo, são um prato cheio para a metafísica a primeira vítima do idealismo transcendental kantiano "Por exemplo, podemos desejar afirmar que Deus é a causa do mundo, mas causa e efeito é outro conceito a priori, como substância, que Kant acreditava ser válido apenas para o mundo percebido, mas não para as coisas em si. Então, a existência de Deus (considerado, como geralmente é, um ser independente do mundo conhecido) não é algo que possa ser conhecido" (O Livro da Filosofia, Ed. Globo, 2011).

Em A Religião nos Limites da Simples Razão, Kant propõe um culto e um comportamento religioso estritamente racional. Assim, ir à igreja, tanto quanto ler um livro considerado sagrado, deveria ser uma atividade simples que, no entanto, lembrasse ao devoto que o divino que ali está sendo cultuado é aquele que representa nele mesmo (o fiel) a mais alta moralidade, do contrário, tal ato poderia preencher seu coração, (como é sabido que o faz), mas, em contrapartida, serviria de testemunho de uma mente vazia, irracional "[...] a pura fé literal corrompe mais do que melhora o verdadeiro pensamento religioso". Provavelmente nenhuma das igrejas e credos que conhecemos atualmente escaparia à crítica movida pelo nosso nobre idealista à religião. No entanto, é muito provável também que ele admitisse, ainda que a contragosto, o quanto elas são "um mal necessário", considerando-se o que ele disse: "Só existe uma religião (verdadeira), mas podem existir muitas formas de crenças. Pode-se acrescentar que nas diversas igrejas que se separam umas das outras por causa da diversidade de seu gênero de crença, pode-se, no entanto, encontrar uma só e mesma religião", porém, acrescentou: "mas somente a pura fé religiosa, baseada inteiramente na razão, pode ser reconhecida necessária, como a única, por conseguinte, que se distingue a verdadeira igreja". Essas declarações do filósofo não foram bem acolhidas pelo recém-chegado ao trono da Prússia, a Frederico II, que era contrário às medidas iluministas do seu antecessor (Frederico, o Grande), e proibiu o pensador de se pronunciar sobre religião, no que foi prontamente atendido, até sua morte, em 1797.

O imperativo categórico kantiano não se pretende uma "máxima ecumenicorreligiosa", mas caberia muito bem em qualquer dos Evangelhos, sem destoar das pregações do Cristo "Não julgueis, e não sereis julgados. Porque do mesmo modo que julgardes, sereis também vós julgados e, com a medida com que tiverdes medido, também vós sereis medidos" (Mateus, 7:1-2). Kant acreditava fielmente na capacidade do ser humano de dominar seus instintos mais perversos através da assunção de sua racionalidade. Ele tentou a todo custo, em sua obra, deixar isso bem claro "[...] a malignidade da natureza humana não deve, na verdade, ser chamada de maldade, se esta palavra for tomada em sentido rigoroso, isto é, como intenção (princípio subjetivo das máximas) de admitir o mal enquanto mal como motivo em sua máxima (pois isso seria uma intenção diabólica), mas, antes, perversão do coração, o qual segundo a consequência, é designado então igualmente de má vontade. Esta não é incompatível com uma vontade em geral boa: provém da fragilidade da natureza humana [..]". Se isso por si só não bastar para fundamentar o argumento que acabo de levantar, que tal, então: "Toda má ação, quando procuramos sua origem, deve ser considerada como se o homem tivesse chegado a isso diretamente do estado de inocência"? Com isso ele pretendia dizer: "Se estivesse em pleno usufruto de sua autonomia, de sua liberdade e de sua racionalidade, jamais cometeria um ato infame, ainda que forças volitivas em seu espírito tentassem movê-lo a tal!". Alguns comentadores do filósofo e de sua "máxima moral" perceberam também a proximidade que há entre ela e o ideal religioso: "Vivamos de acordo com este princípio, e em breve iremos criar uma comunidade ideal de seres racionais; para criá-la, precisamos apenas agir como se já pertencêssemos a ela; [...] só assim poderemos deixar de ser animais e começar a ser deuses" (DURANT, 2000).

Sim! O idealismo kantiano, visto por nós, homens do século 21, que sabemos perfeitamente que aquelas luzes do século 18 não foram capazes de iluminar suficientemente as mentes e os corações dos homens, de modo a evitar duas a Grandes Guerras, no século 20, e toda uma série de outras pequenas e grandes calamidades perpetradas pela malignidade humana, sim! O idealismo kantiano pode ser chamado de utópico. Mas não esqueçamos que "utopia" não significa apenas o lugar impossível, irreal. Ela também é o "lugar dos sonhos", e por que, então, não poderia ser também "o lugar dos nossos objetivos"? Um homem pequeno e franzino viveu toda sua vida sem nunca tirar o pé de sua cidadenatal. Influenciou dali mesmo outros homens que, como ele, ousaram edificar um mundo melhor. Destruiu os pilares de uma pseudociência, chamada metafísica, desconstruindo assim os argumentos de nobres pensadores de mais de 20 séculos. Sem ser religioso, viveu dentro da mais estrita moralidade e no respeito ao seu semelhante. Morreu aos 79 anos, sem ter casado, sem ter filhos, tão simples quanto veio ao mundo, contudo, ciente do "dever" cumprido. Se essa história é mesmo, como os anais atestam, verídica, é melhor que alguém entre nós, homens do século 21, assuma imperativa e categoricamente a nobre tarefa de dar uma resposta a esta pergunta: O que, afinal, é utopia?

REFERÊNCIAS

ABRÃO, Bernadette Siqueira (Org.), A História da Filosofia, Nova Cultural, 2004;

CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia, São Paulo: Ática, 1998;

DURANT, Will, A História da Filosofia, Ed. Nova Cultural, 2000;

KANT, Immanuel, A Religião nos Limites da Simples Razão, Ed. Escala, 2008;

MARÍAS, Julián, História da Filosofia. Porto: Edições Sousa & Almeida, 4ª edição, 1978;

MORENTE, Manuel García. Fundamentos de Filosofia. São Paulo: Editora Mestre Jou, 7ª edição, 1979; NIETZSCHE, Friedrich W., Aurora Ed. Escala, 2007.

* Jaya Hari Das é filósofo, criador da Terapia Hari, diretor/fundador do MOFICUSHINTH. E-mail: moficushinth@yahoo.com.br

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